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IMAGEM PENSADA

A beleza da consagração dos corpos

Por LUIZ ANTONIO SIMAS

O candomblé é uma religião fortemente alicerçada na transmissão de conhecimentos pela oralidade. Os relatos dos mitos que envolvem as histórias dos orixás, reproduzidos ao longo dos tempos nos terreiros, modelam condutas e justificam os ritos que caracterizam o culto.

Um dos mitos mais famosos da religião conta que, em certa ocasião, Iku, a morte, resolveu atacar um povoado e tirar a vida das pessoas antes do tempo. Os anciãos, preocupados com isso, consultaram o oráculo de Ifá, que disse a eles que Oxalá era um orixá que sabia como agir para espantar Iku.

Os anciãos procuraram Oxalá, que resolveu agir. Ele determinou que as pessoas pegassem uma galinha preta, nela fizessem uma série de pintas brancas, com efum (uma espécie de pó de giz branco), colocassem uma espécie de cone moldado no barro na cabeça da ave e a soltassem no mercado. Assim foi feito. Ao ver aquela ave estranha solta no mercado, a morte se espantou e foi embora, deixando o povoado em paz.

O mito citado – como Oxalá criou a galinha d’angola para espantar a morte – explica o fato de que nos ritos secretos de iniciação no candomblé, as iaôs (noviças) sejam pintadas como galinhas da angola, raspem as cabeças e tenham os corpos cobertos por penas de animais sacrificados – cujas carnes serão compartilhadas pela comunidade do terreiro – em uma belíssima cerimônia que marca o renascimento do ser e o triunfo da vida sobre a morte.

O ritual de iniciação das iaôs, um dos mais secretos da religião, foi pioneiramente registrado em 1951 pelo fotógrafo José Medeiros. As fotos, acompanhadas pelo texto do repórter Arlindo Silva, foram publicadas na revista O Cruzeiro, em reportagem com o título “As noivas dos deuses sanguinários”.

Em um período em que o preconceito contra o candomblé – visto grosso modo como um culto primitivo, desprovido de cosmogonia e vinculado à prática de bárbara feitiçaria – grassava, a reportagem apostou em um tom sensacionalista, que reforçou estereótipos, não procurou compreender os sentidos polifônicos do rito iniciático e foi, por isso mesmo, repudiada pelos terreiros mais tradicionais do Brasil, como a Casa Branca do Engenho Velho, o Axé do Opô Afonjá e o Gantois, as três casas matrizes do culto aos orixás na Bahia.

Se o tom da reportagem foi francamente preconceituoso, as fotos de José Medeiros impressionaram por outras razões. Estimulado a fazer as fotos após conhecer uma matéria que saiu na revista Paris Match, da França, intitulada “Léss possédéss de Bahia” (“As possuídas da Bahia”), Medeiros procurou as casas mais famosas de Salvador, mas não obteve autorização para registrar as cerimônias. Apenas um pequeno terreiro na periferia da cidade – o Ilê de Mãe Riso da Plataforma – deu autorização para que o ritual fosse fotografado.

Com um problema no equipamento – o cabo de sincronismo do flash quebrou – Medeiros recorreu a uma técnica manual em que o cabo do obturador ficaria aberto enquanto o botão fosse pressionado. As belíssimas fotos em preto e branco, com uma solução de luz que ressaltava a beleza e o mistério do rito, acabaram sendo republicadas em um livro chamado “Candomblé”, seis anos depois da reportagem de O Cruzeiro.

Se a revista trazia 38 imagens, o livro, com um texto mais objetivo que buscou evitar o tom francamente preconceituoso da revista, publicou 52 fotos sobre as várias etapas da cerimônia, da raspagem da cabeça à festa de apresentação das iniciadas à comunidade.

Em geral, o objetivo da iniciação de alguém no candomblé é o de preparar o corpo para que, uma vez sacralizado, ele seja capaz de expressar a centelha divina do orixá, que se manifestará através do transe, das danças, das roupas e das ferramentas com que se exibirá em público.

Se para a tradição ocidental o corpo costuma ser separado da mente (Platão via o corpo como um obstáculo à perfeição, São Paulo o considerava fonte de pecados, Descartes acreditava que o corpo é apenas uma matéria incapaz de compreender o mundo), para as tradições não brancas não há dualidade entre corpo e mente. Para os iorubás – que trouxeram o culto dos orixás para o Brasil – existem dois tipos de poder intimamente ligados: o agbara, o poder físico; e o axé, o poder espiritual. Eles não são estanques. Neste sentido, vivenciar a espiritualidade em plenitude não é se livrar do corpo, mas consagrá-lo para que o humano (iaô) se divinize, e o divino (o orixá) seja humanizado.

Religião caracterizada por uma cosmogonia e por uma ontologia sofisticadas, o candomblé sofre hoje, em pleno século XXI, um preconceito que parece ter ganhado tintas mais sinistras, com o avanço no Brasil de algumas designações religiosas pentecostais que vinculam o culto aos orixás ao terreno do maligno.

As fotos de José Medeiros continuam cercadas de polêmica, já que registraram cerimônias vetadas a todos os não iniciados e fizeram com que a feitura de orixá documentada não fosse liturgicamente reconhecida pelas casas matrizes do candomblé. De outro modo, são registros belíssimos de ritos dotados de sentidos e performances estéticas que surpreendem pelo alto grau de complexidade.

Neste sentido, ao tentar documentar cerimônias radicalmente distintas daquilo que a tradição ocidental supõe ser a expressão da fé, Medeiros registrou a beleza e a transcendência dos ritos de encantamento dos corpos como caminhos para a plenitude da experiência do ser no mundo.

Luiz Antonio Simas é professor, escritor, poeta e compositor.  É autor de livros como “Umbandas: Uma história do Brasil” e “O corpo encantado das ruas”.