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IMAGEM PENSADA

Muito além da suástica

Por MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO

Importante prova de automobilismo internacional, o Circuito da Gávea realizado no Rio de Janeiro desde 1933 –  era também conhecido como “Trampolim do Diabo”, por sua pista sinuosa e as diferenças no solo, ora com cimento, paralelepípedos e areia, além de trechos com trilhos de bondes. Nesta parte da Marquês de São Vicente, ponto de largada dos pilotos inscritos na prova, uma multidão de torcedores e dezenas de veículos (entre os quais o furgão preto da Cinédia) misturam-se entre as bandeiras dos países que, naquela manhã de 6 de junho, disputavam o V Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro: Alemanha (com a cruz gamada), Argentina, Brasil, França, Itália e Portugal. A prova teve como vencedor o italiano Carlo Pintacuda (Scuderia Ferrari) que, por sete segundos, deixou em segundo lugar o alemão-austríaco Hans von Stuck (Auto Union).

De forma implícita, temos a demonstração de força do Estado em organizar um evento com tamanha magnitude que, na sua essência, extrapolava o interesse propagandístico de projetar grandes marcas no mercado internacional, como Bugatti, Ferrari, Fiat, Ford, Alfa-Romeo e Auto Union, dentre outras. A teocracia se faz presente em todas as cenas deste documentário produzido pela Cinédia, revelando personagens, cenários e ritos da ordem pública que regulavam a vida cotidiana da coletividade: é o poder em cena. Assim como nos regimes totalitários, aquele evento foi idealizado para ser uma festa popular, sem protestos e sem motins, sendo a ordem garantida pelo policiamento espalhado por terra e mar, envolvendo um total de 4 mil homens. Esta foi, mais uma vez, a  forma acionada pelo poder para domesticar a desordem e garantir a presença apoteótica de Vargas que, em plena campanha de sucessão eleitoral, reafirmava a imagem do Estado-Pai e de Getúlio “Pai dos Pobres”.

Cenas do curta-metragem "Circuito da Gávea de 1937”, dirigido por Carlos Braga e produzido pela Cinédia: demonstração de força do estado

Os preparativos  para a corrida do V Circuito ocorreram em meio ao estado de guerra decretado no país em março de 1936 para combater o comunismo e preparar a campanha sucessória que, através da censura e restrição da participação política, deveria garantir a continuidade de Vargas no poder. Neste dia 6 de junho, estava em plena gestação o golpe de Estado que implantaria a ditadura presidencialista no Brasil. A festa oferecida ao povo naquela manhã de domingo prestava-se também para encobrir o trabalho “sujo” de varredura do “perigo comunista” que, em setembro de 1936, havia culminado com a prisão das jovens militantes Olga Benário e Elise Saborovsky Ewert (a “Sabo”), ambas deportadas para a Alemanha nazista, onde foram assassinadas nos campos de concentração de Bernburg e Ravensbrüch, respectivamente.

Em 25 de maio de 1937 – portanto um mês antes deste evento automobilístico -, o Itamaraty já havia emitido a Ordem Permanente de Serviço n. 26, antecipando o teor antissemita da Circular Secreta n. 1.127, assinada em 7 de junho de 1937, proibindo a concessão de vistos aos judeus que fugiam da violência nazista, ou seja: um dia após a corrida, o governo Vargas (re)afirmava o colaboracionismo do Brasil com o plano de extermínio do povo judeu perpetrado pela Alemanha nacional-socialista. Portanto, nada era gratuito naquele cenário de “aparências”:  o alinhamento da bandeira brasileira com a da Alemanha nacional-socialista expressava as intenções da  política externa brasileira pautada na construção da imagem de um Brasil moderno, industrializado, independente e respeitado pelas grandes potências mundiais. Cinco meses após o V Circuito, em 10 de novembro, Vargas daria o golpe de Estado que instituiria o Estado Novo (1937-1945), anunciado em rede de rádio como o início de uma nova era pautada pelo nacionalismo exacerbado, pelo autoritarismo e pela xenofobia.

Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora e professora livre-docente do Departamento de História da USP, na qual coordena o LEER (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação). É autora de livros como “O Antissemitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração, 1930-1945” e “Cidadão do Mundo: O Brasil diante do Holocausto e dos refugiados do nazifascismo”. 

Cena do curta-metragem "Circuito da Gávea de 1937”, dirigido por Carlos Braga e produzido pela Cinédia: demonstração de força do estado