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Fotojornalismo hoje: perspectivas e dilemas

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR

É o professor Michele Pucarelli, da Universidade Federal Fluminense (UFF), quem diz:

– O fotojornalismo contemporâneo tem condições de continuar a exercer o importante papel de testemunha ocular da história.

São muitos os desafios, mas ele vê com otimismo o papel da profissão nos dias de hoje. No aniversário de um ano do Testemunha Ocular (TO), celebrado neste dia 2 de junho, o site convidou especialistas e fotógrafos para analisar as perspectivas e os dilemas da profissão.

Não faltam razões para preocupação: as imagens geradas por Inteligência Artificial, a crise no jornalismo, a enxurrada de fotos que vêm a reboque dos celulares e das redes sociais, as fake news, a perda de credibilidade trazida pelo digital. Mas ainda assim o fotojornalismo segue como um espaço crucial para estabelecer a verdade factual, um dos pilares da democracia.

– Nesse momento, ele adquire uma importância ainda maior, ao fazer um contraponto às montagens e manipulações, já que segue regras e padrões – observa Lalo de Almeida, um dos fotógrafos convidados do site, que em 2021 venceu a categoria Meio Ambiente do World Press Photo, a mais prestigiosa premiação de fotojornalismo do mundo, com fotos como a de um macaco bugio ajoelhado e carbonizado no meio de uma mata devastada, publicada na Folha de S.Paulo.

A banalização das imagens é um dado irrefutável, que traz riscos, mas também oportunidades. O fotojornalista Orlando Brito (1950-2022) falava: “Hoje existe muita imagem e pouca fotografia, todo mundo tem um celular, todo mundo fotografa tudo em qualquer lugar, depois algumas delas são postadas, e a maioria, esquecida.” Ou seja, nessa hora se sobressaem os profissionais.

– Hoje todo mundo tem uma câmera na mão. Em poucos minutos, já está tudo nas redes sociais, de vários ângulos: de cima, de baixo, de dentro, de fora. E quem está com o celular fotografando e filmando também quer o protagonismo, busca likes e visualizações. Não vale apenas mostrar a cena, parece que a importância agora está em se mostrar também na cena – diz Márcia Foletto, que trabalha no Globo e também tem uma página dedicada a seu trabalho no site. – Neste contexto, o fotojornalismo perde, pois não tem a velocidade e a estratégia das redes. Mas, por isso mesmo, nunca foi tão importante termos profissionais com preocupações éticas e humanas, com compromisso com a verdade e força para se fazer ouvir e ver.

Lalo concorda com Márcia. Para ele, cada vez mais o autor é relevante:

– Importa a credibilidade de quem está por trás da foto.

Fotógrafa da Folha de S.Paulo, Gabriela Biló acredita que os celulares, que democratizam o acesso, e as redes sociais, que facilitam a publicação, são bem-vindas.

– Você não precisa mais de um grande veículo para produzir seu material. Isso dá voz a pessoas que jamais teriam como chegar à mídia para mostrar seu trabalho. Para mim, isso só fortalece o fotojornalismo. Você tem mais representatividade, mais pessoas diferentes, mais vozes conseguindo ser ouvidas e conquistando visibilidade.

O professor Michele também acredita que nesse ambiente de bombardeio de imagens o fotojornalista se destaca.

– A foto digital trouxe a democratização do acesso. Muita gente passou a fotografar, o que é bom. Mas ao mesmo tempo houve uma inundação de imagens. Para achar algo digno de nota você é levado por uma torrente de imagens e perde muito tempo. O fotojornalismo ainda é o nicho de preservação da história da fotografia – assegura Michele, que neste dia 2 de junho, às 15h30, promove com Bruna Belém o debate “Pensar as imagens nas redes – Os potenciais de mudanças, limites e desafios”, no Intercom Sudeste 2023, no campus Gragoatá, da UFF, em Niterói.

Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília, Rafael Castanheira igualmente ressalta o papel do fotojornalista numa época em que todo mundo se tornou uma testemunha visual, fotografando e compartilhando, e em que o digital facilitou a manipulação das imagens, botando em xeque a veracidade e a credibilidade do que é publicado.

– O fotojornalista traz com ele uma credibilidade, uma reputação, um nome a zelar. Junto com a foto vem a ética desse profissional, que garante a ética do material que está sendo produzido. Que é um material mais consistente e com qualidade, não somente estética, mas informativa.

Rafael reconhece que os jornais não conseguem concorrer com o trabalho dos fotógrafos cidadãos, que estão ali na hora captando os flagrantes e entrando em muitos locais aonde o fotojornalista não entra. Mas, por outro lado, o fotojornalista traz um olhar mais apurado e aguçado. Ele não somente domina a técnica, como em geral traz uma bagagem sociocultural mais profunda.

A questão é como conciliar o coração e o bolso. Equilibrar a vontade de exercer uma carreira desafiadora com a necessidade de se sustentar é uma conta que não fecha para a maioria dos profissionais. Uma das maiores fotojornalistas do país, Rosa Gauditano lamenta as condições de trabalho em uma profissão, segundo ela, “fundamental”:

– O jornalismo e o fotojornalismo estão definhando a cada dia, no Brasil. Os empregos fixos quase não existem mais, e, quando surge um trabalho, o preço que oferecem é infame.

Uma opção de sobrevivência são as fontes alternativas de financiamento, como institutos, fundações e ONGs. É assim que Lalo tem vivido nos últimos oito anos. Fotógrafo da Folha de S.Paulo, ele consegue fazer um trabalho de fôlego graças a essas parcerias. São três pontas: o fotojornalista, que quer publicar, o jornal, que tem espaço e sabe editar, e o financiador, que tem interesse de botar determinados assuntos na mídia. Ele calcula que 90% do que faz na Folha é financiado por instituições externas ao jornal, a maioria delas estrangeiras.

– Não há interferência editorial. Eu que proponho as pautas. Essas instituições financiam porque querem colocar esses temas na imprensa para que sejam discutidos. Esse modelo me deu muita independência – conta ele, que também diz correr atrás de bolsas que patrocinem os projetos.

Mas Lalo reconhece ser uma exceção, a “ponta de um iceberg”, em meio a muita gente afundando. Tanto que Rosa Gauditano fala de sua saga atrás de patrocínio:

– Os fotógrafos independentes têm que batalhar muito para conseguir financiamento e tocar para frente um trabalho importante. Desde 2019, eu já estava pesquisando o mercúrio nas áreas indígenas na Amazônia, para registrar o impacto nas aldeias e no meio ambiente. Tentei vários editais de financiamento e nunca consegui nenhum.

Victor Moryama, que é colaborador do jornal The New York Times, é outro que constata as dificuldades.

– São pouquíssimos os veículos que têm fôlego financeiro hoje para produzir reportagens. A imprensa está perdendo espaço, leitor e força – diz ele, autor da foto do alto desta página, que mostra o incêndio na floresta em Rio Pardo, em Rondônia, em 2019.

Ele se diz um privilegiado de trabalhar num veículo internacional, enquanto muitos colegas estão sem trabalho ou mudaram de carreira. Mas nem por isso deixa de ficar inquieto com os rumos da profissão. De qualquer forma, é um entusiasta do fotojornalismo:

– Ele tem um papel nobre. Tem o poder de traduzir muitas situações complexas, muitas camadas da realidade, numa única imagem. Tem uma capacidade ímpar de provocar sensações. Acaba sendo um espelho para a gente refletir sobre o caminho que estamos tomando enquanto sociedade e enquanto humanidade.

Além disso, é o fotojornalista que está no campo de batalha, como mostram as fotos de Evandro Teixeira feitas em meio às ditaduras militares no Brasil e no Chile, com o governo reprimindo duramente os opositores políticos, nos anos 1960 e 1970. Mesmo hoje ainda é assim.

– É o fotojornalista que está na linha de frente, trazendo as verdades do front. Todo mundo tem um celular hoje em dia, mas quem se enfia no meio dos caiapós para acompanhar uma expedição contra a invasão da terra deles são os fotojornalistas – diz Victor Moryama, que também tem seu trabalho apresentado nas páginas do TO.

Uma dessas situações complexas que ajudam a entender a realidade está acontecendo agora, na Ucrânia. O fotojornalismo sempre foi importante para mobilizar a opinião pública nas guerras, e não seria agora que ficaria de fora. Recentemente, o Pulitzer, um dos prêmios mais importantes da imprensa mundial, elegeu um conjunto de 15 fotos feitas na guerra da Ucrânia por seis profissionais da agência Associated Press como as melhores do ano na categoria fotografia de notícias. As imagens da AP mostram o horror e o absurdo do conflito. Há cenas de execuções, bombardeios, destruição, ataques a inocentes, funerais, enterros coletivos. Há mortos e feridos. Os sobreviventes exibem em seus rostos perplexidade, medo, desespero.

Um desses profissionais é o carioca Felipe Dana, que registrou civis mortos por forças russas.

– São cenas horríveis, assustadoras e comoventes que infelizmente têm se repetido muito desde o início da escalada do ano passado. Elas mostram o devastador custo humano da guerra – diz ele.

Todos concordam que sem esses profissionais você não consegue ter a dimensão do impacto da guerra no cotidiano das populações. A questão é que enviar equipes para zonas distantes de guerra é custoso e perigoso. Algo mais desafiador ainda numa época em que a indústria jornalística passa por um momento de crise econômica profunda. Com isso, somente profissionais de empresas de determinados países – como agências de notícias gigantes, grandes jornais americanos e europeus, e veículos asiáticos – é que conseguem fazer esse tipo de investimento.

– Dessa forma, eles têm o domínio da narrativa do que está acontecendo. Os veículos de países que estão à margem, inclusive o Brasil, estão cada vez mais dependentes da narrativa que é imposta e produzida por esses veículos que têm condições de enviar profissionais para locais de conflito – diz Daigo Oliva, editor de Internacional da Folha de S.Paulo.

Essa disparidade sempre existiu, mas hoje em dia a capacidade de investimento para produção de reportagens próprias de países de fora do Primeiro Mundo está cada vez menor.

Ainda assim, sempre haverá espaço para o profissional que faz o registro e a interpretação visual dos fatos, sintetizando numa ou mais imagens a complexidade do mundo.

– E as crises são cíclicas – diz o professor Rafael Castanheira.

Elas passam e o fotojornalismo fica.

O site Testemunha Ocular foi idealizado e lançado por Flávio Pinheiro, superintendente-executivo do Instituto Moreira Salles de 2008 a 2020, com o objetivo de preservar e difundir o passado e o presente do fotojornalismo brasileiro.

Ainda dentro das comemorações do primeiro aniversário do TO, o site vai continuar debatendo questões importantes sobre o fotojornalismo. No dia 12 de junho, é a vez de discutir os impactos da Inteligência Artificial e da sobreposição de imagens no dia a dia da profissão.

Um toco de madeira em uma floresta recém-queimada irregularmente em Rondônia. Foto feita em 2019 por Victor Moriyama e publicada no The New York Times
Crianças são revistadas por soldados do Exército em Botafogo, durante operação das Forças Armadas. Foto feita por Márcia Foletto no Rio de Janeiro, em 1994, e publicada no Globo
Indígena Tuira Kayapó protesta contra construção da Usina de Belo Monte no Encontro de Altamira. Foto feita por Rosa Gauditano no Pará, em 1989. Acervo pessoal
Forças especiais da Policia Federal iraquiana disparam foguete em direção a posições do Estado Islâmico em Mossul, Iraque. Foto feita em 2017 por Felipe Dana/AP
Macaco bugio carbonizado em Santa Tereza, no Pantanal matogrossense. Foto feita por Felipe Dana para a Folha de S.Paulo. Prêmio do World Press Photo. 2021
Protesto contra o presidente Michel Temer na região da Avenida Paulista, em São Paulo, SP, em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff. Acervo pessoal. Gabriela Biló
Fogo na floresta em Rio Pardo. Rondônia, 2019. Foto de Victor Moryama para o The New York Times