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Infância roubada

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR

Em dezembro de 2019, a fotógrafa Selma Souza entrou para o jornal Voz das Comunidades decidida a mostrar “a vida pulsante” que existe no Complexo do Alemão, onde mora há 52 de seus 56 anos.

– Queria registrar a beleza da minha comunidade. A alegria das crianças brincando na rua, jogando bola de gude e futebol, soltando pipa, pulando corda, pedalando, andando descalças. A ideia era, e é, mostrar tudo que existe, para além de crime – diz ela, que é especialista em fotos de esporte, em especial de corridas de rua.

Por uma triste ironia, o trabalho de Selma acabou sendo mais conhecido pelo mesmo motivo que ela queria evitar: a violência. Não na sua comunidade, mas na da Cidade de Deus. A foto que ela fez de crianças chorando durante o enterro do garoto Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, morto no dia 7 por policiais militares quando andava na garupa de uma moto voltando para casa, viralizou nas redes sociais e se tornou o símbolo da morte de inocentes por forças de segurança. O escritor Itamar Vieira Junior, por exemplo, escreveu que é uma imagem que “grita mais que todos nós juntos e clama por um basta” às operações policiais que tiram vidas de norte a sul. “Essa fotografia é um grito por justiça”, escreveu o autor do best seller “Torto arado”.

Na terça-feira, dia 8, Selma tinha sido incumbida pelo diretor operacional do Voz das Comunidades, Renato Souza, de ir ao cemitério da Pechincha acompanhar o sepultamento.

– Falei que se fosse possível eu não queria ir. Me faz muito mal estar em cemitério, é um lugar de muita dor e sofrimento, eu me sinto incomodada.

Mas não havia mais ninguém disponível e ela foi escalada. Até então, só tinha estado em cemitério por conta da morte de parentes. Foi sua primeira cobertura de uma tragédia. Chegou lá e se posicionou junto a outros profissionais da imprensa. Ficou em cima de um jazigo, mas havia muitas pessoas e ela preferiu ir para outro canto. Havia uma mistura de tristeza e revolta. Selma fez vários registros da cerimônia. Até um certo momento, o silêncio era interrompido apenas pelas preces e orações, e pelos discursos. Mas com a chegada do caixão e a descida para a sepultura, começaram os gritos de desespero.

– Vi na minha frente aquele menino soluçando de tanto chorar. Pensei: “Tadinho!”. Me deu uma dor, uma vontade de abraçar e confortar.

Só conseguiu fazer dois cliques.

– Depois não tive mais condições. Saí dali e comecei a chorar. Não fiz para explorar, fui levada pela emoção. O som dos choros e dos gritos de desespero não saem da minha cabeça.

No total, Selma fez mais de cem fotos do enterro. Selecionou onze delas e enviou para serem publicadas no jornal. Não quis incluir na lista a foto dos amigos de Thiago chorando.

– Não queria chocar tanto. E achei que ia invadir a privacidade das crianças.

E, de fato, a foto não saiu publicada no portal. Mas o diretor executivo do Voz, Rene Silva, soube da foto e resolveu publicar em seu Instagram, com a legenda: “Se essa imagem não te comove, você está morto por dentro.” Foi o suficiente para a imagem se espalhar rapidamente, comentada ou compartilhada por gente como Xuxa, Claudia Abreu, Astrid Fontenelle, Péricles, Laerte, Carlos Tufvesson, Hugo Gloss, Samantha Schmütz, Titi Muller, Ana Paula Araújo, Tico Santa Cruz e Ana Thais Matos. A colunista Cora Rónai observou: “Tristeza sem fim. Como o Brasil desperdiça o futuro.” O próprio Rene sugeriu a Selma postá-la também em sua página no Instagram, @selmasouzaphotos. Ela fez, e viu o número de seguidores pular de 1.700 para quase seis mil.

– Rene percebeu que a foto dizia muito, que ela poderia ajudar a sensibilizar as pessoas que têm o poder de parar essa máquina da morte – diz Selma, cujo trabalho no esporte pode ser visto no site selmasouza.fotop.com.br.

Esta era uma vontade de Selma, que a foto chegasse a quem atirou e também aos altos escalões, para que se comovessem e se sensibilizassem.

– Para eles verem o impacto de uma bala numa comunidade. Além de matar o Thiago, elas tiram a infância de todas essas outras crianças. Espero que a foto ajude a repensar a matança das crianças.

No Instagram de Selma, foram milhares de comentários, classificando a foto como “devastadora”, “dilacerante”, “de doer na alma”, “de rasgar o coração”, “sensível e dolorida”, “um registro muito delicado cheio de emoções”. Uma pessoa agradeceu: “Obrigado por dar imagem às injustiças, dar imagem à dor, à cor, à revolta, e obrigado por dar inocência às crianças injustiçadas, doloridas, inocentes.” Uma internauta disse: “A dor e o choro dessas crianças podem ser sentidas por cada um de nós.” Outra escreveu: “Sinto a dor nessa foto.” Uma terceira revelou: “Eu só sei chorar depois que vi a foto.” Um homem disse: “Essa foto traz a dor concreta da perda.”

Selma se diz impressionada com a repercussão:

– Sempre quis que meu trabalho ultrapassasse fronteiras, mas nunca imaginei que seria por um motivo tão sofrido.

Os amigos de Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, foram se despedir do adolescente no cemitério da Pechincha. Foto de Selma Souza/Voz das Comunidades
Amigos e parentes de Thiago Menezes Flausino choram no enterro do adolescente, morto por PMs quando voltava para casa. Foto de Selma Souza/Voz das Comunidades
Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, morto por policiais militares, sonhava em ser jogador de futebol. Reprodução.