As chacinas como método
MAURO VENTURA
Há 30 anos, dois massacres, realizados num intervalo de pouco mais de um mês, deixaram marcas profundas na história do Rio. Na noite de 23 de julho de 1993, policiais atiraram contra crianças e adolescentes que dormiam nas proximidades da igreja da Candelária. Como resultado, foram mortos oito meninos e jovens, entre 11 e 19 anos. No mês seguinte, na noite de 29 de agosto, seria a vez de 21 inocentes serem executados na favela de Vigário Geral por um grupo de extermínio formado por PMs, os chamados Cavalos Corredores.
As duas matanças também deixaram lembranças na trajetória de três fotógrafos que participaram das coberturas: Márcia Foletto e Custodio Coimbra, do Globo, e Luiz Morier, então no Jornal do Brasil. Os três profissionais, que têm páginas dedicadas a seus trabalhos no site Testemunha Ocular, falam sobre os desafios e as dificuldades de cobrir as duas chacinas.
Na manhã após a tragédia, Custódio chegou cedo à Vigário Geral. Primeiro foi ao bar onde quatro pessoas tinham sido mortas. Em seguida, caminhou pelas ruas, becos e vielas, deparando-se com outras vítimas, até ir para a casa onde oito pessoas de uma mesma família de evangélicos tinham sido dizimadas.
– Era uma cena dantesca. Na sala, tinha duas mulheres mortas abraçadas, e outra no chão, ao lado de uma TV. Havia muito sangue em toda a casa. Foi muito difícil fotografar, pela violência, pela crueldade e pelo absurdo daquela cena de tantas pessoas assassinadas sem motivo aparente.
Entre os mortos estavam ainda, por exemplo, um grupo de sete amigos que costumava se reunir num bar após o trabalho.
Com o tempo, Custodio tentou apagar da memória não a história, mas a pesada carga de emoção negativa que teve que viver naquele dia, registrada em várias imagens impactantes.
Já Márcia Foletto fez em Vigário Geral uma foto de 18 corpos enfileirados que foi parar em destaque na primeira página do Globo. Ela conta como foi:
– Quando o primeiro corpo foi retirado da comunidade, os moradores não deixaram que ele fosse colocado no rabecão. Pediram que os bombeiros esperassem até que todos os outros fossem retirados. Aos poucos, foram chegando os demais corpos. Eu e outros fotógrafos e cinegrafistas nos posicionamos em cima do muro que divide a linha do trem e fomos vendo aquela imagem, das vítimas lado a lado, sendo construída aos poucos.
A cena tornou-se um símbolo da brutalidade policial.
Morier, por sua vez, passou por maus momentos nesse dia da chacina. Após o massacre, um grupo de moradores fez um protesto, enquanto os corpos ainda estavam estendidos no chão. Próxima dali, havia uma viatura da PM parada. Num determinado momento, as pessoas, revoltadas, jogaram pedras no veículo. Morier teve que se proteger. Mas o lado profissional falou mais alto. Ele registrou o momento em que um dos policiais saca o revólver e atira. O PM percebeu que havia sido fotografado e, de arma em punho, correu atrás dele.
– Fiquei com medo de que ele atirasse em mim – recorda.
O comandante chegou a gritar para seu subordinado: “Para, para, deixa ele!” Mas o policial seguiu no encalço de Morier, chegando a segurá-lo, e só desistiu quando o fotógrafo conseguiu entrar no meio de outros jornalistas, que começaram a gritar em seu apoio.
Dias antes, os fotojornalistas já tinham vivido uma experiência difícil, com a chacina da Candelária. Márcia cobriu o enterro de uma das vítimas, no cemitério do Caju.
– Havia uma grande confusão, com os meninos sobreviventes enrolados em cobertores para esconder o rosto.
Como a imprensa estava presente em grande número, ela procurou um ângulo diferente para fotografar. Foi para um outro lado e, em vez de registar o caixão em primeiro plano, como todo mundo, preferiu direcionar seu olhar para os amigos das vítimas, deixando o enterro propriamente dito ao fundo da cena.
Custodio, por coincidência, havia estado na Candelária poucos meses da chacina, documentando para uma reportagem do Globo as crianças e adolescentes que dormiam na região – muitas delas se tornariam depois alvos do ataque dos policiais.
– Lembro do olhar de um menino acordado, imóvel, de uma tristeza que me fez deitar no chão como ele. Esses meninos habitavam a Candelária havia alguns meses. Dormiam embaixo dos pilotis, usavam o chafariz como banheiro e a casa de máquinas para guardar as roupas. Cheguei num dia à tarde e eles estavam agitados pelo consumo de cola, mas solícitos e carentes. Combinei que voltaria no dia seguinte cedinho para fazer uma foto de todos dormindo. No dia seguinte, quando cheguei, o clima era outro. Estavam acordando tranquilos, em um ritmo diferente do pique do dia anterior. Eram crianças dormindo, desassistidas.
Um cenário bem diferente do que se veria em 23 de julho, como testemunhou Morier, que fez uma foto de um dos corpos estendido no chão. Ele diz que as duas chacinas foram muito “pesadas” – a de Vigário principalmente pela grande quantidade de mortos, todos inocentes, a da Candelária por envolver crianças e adolescentes. Ele, que tem em sua carreira fotos marcantes de violência, curiosamente nunca gostou de registrar cenas “barra pesadas”, como diz.
– É muito ruim ver a morte de perto. Eu tinha muito colegas doidos para cobrir guerras em outros países. Já eu não, nunca quis. Mas acabei passando a vida inteira cobrindo a guerra urbana do Rio. A tal ponto que falavam: “Ah, o fotógrafo de guerra é o Morier.”
No caso da Candelária, a chacina teria ocorrido por um motivo banal. No dia anterior, dois garotos teriam sido detidos. E, na sequência, uma viatura teria sido atingida por uma pedra. As mortes seriam uma vingança. Três policiais e um ex-PM foram condenados pelo crime, mas já estão soltos.
No caso de Vigário Geral, os policiais militares teriam matado as vítimas em represália à morte de quatro colegas por traficantes da favela. O Ministério Público denunciou 51 pessoas. Houve dois julgamentos e, no final, sete foram condenado. Nenhum está preso. Um deles estava cumprindo pena em regime semiaberto, por outro crime, mas morreu em 2021. Apesar da repercussão que as duas matanças tiveram, de lá para cá muitas outras chacinas ocorreram no estado do Rio.
Morier lamenta que, passados 30 anos, cenas trágicas como aquelas ainda se repitam.
– Infelizmente, as chacinas continuam até hoje. É chocante.