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"Cidade de Águas"

MAURO VENTURA

As chuvas começaram a atingir o Rio Grande do Sul no dia 27 de abril. Em meio ao caos que se seguiu, o arquiteto Márcio Carvalho sentiu a urgência de reunir olhares que registrassem a tragédia. Ele convidou a jornalista Cláudia Aragón para juntar um grupo de fotógrafos que fosse a campo, não só em Porto Alegre como nas demais regiões do estado, já que o desastre atingiu 96% dos municípios gaúchos, afetando 2,4 milhões de pessoas.

– Liguei para cada um e disse: vamos para a rua – conta ela.

Desde então, onze profissionais – dez gaúchos e um paranaense – têm captado imagens do dia a dia de um estado às voltas com a força das águas: Alexandre Raupp, Brian Baldrati, Fabiano Benedetti, Fernanda Chemale, Fernando Bueno, Jefferson Botega, Nathan Carvalho, Nilton Santolin, Raul Krebs, Popy Martins e Zuza Sefrin.

– Quem viveu de perto a emergência das enchentes conheceu, como diz Santolin, as “marcas indeléveis” deixadas na cidade e dentro de nós. Queremos estender esse alerta a quem não estava aqui. Um convite continuado a refletir após o assunto cessar na imprensa e redes sociais. O projeto é a manifestação desse alerta – diz Márcio, sócio do escritório Smart Arquitetura.

O esforço coletivo vai resultar num livro e numa exposição itinerante, com curadoria de André Severo. A renda será revertida para projetos sociais do Sul. Com título provisório de “Cidade de Águas”, os trabalhos não têm data para vir a público. Afinal, como diz Claudia, “tudo está em curso, é um projeto muito vivo, que vai mudando a todo tempo”:

– Seguimos registrando a história imediata para que ela também seja contada, agora e no futuro, pelo prisma sensível da arte. Em três espaços de tempo e ação: a força das águas, a força da solidariedade e a força da reconstrução.

O número de fotógrafos ainda pode ser alterado, incluindo gente de outros estados e até do exterior.

– Cada um deles foi tocado de maneira diferente pela tragédia. Às vezes registraram o mesmo tema, mas com sua forma específica de olhar – diz Cláudia.

Raupp, por exemplo, focou na memória. Ele tem encontrado álbuns de família perdidos em meio aos destroços. Uma foto mostra uma carteira de identidade cheia de barro, no qual só se destaca um dos olhos. Ele fala sobre o desafio que tem enfrentado, já que nunca trabalhou com fotojornalismo – sua formação é em Publicidade e Propaganda:

– Experimentei um lado diferente da minha profissão. Na produção das imagens, existe sempre a questão da busca pela beleza, mas quando você se depara com a situação das enchentes parece absurdo pensar em “beleza”. Queria contar o que estava acontecendo não de forma literal, mas por meio de nuances. Meu bairro, Menino Deus, foi afetado pela água. Quando ela baixou e a limpeza começou, era possível ver álbuns, caixinhas de recordação, a história da vida das pessoas coberta por lama. Confesso que nunca tive uma experiência visual tão forte. Estar de luto e ao mesmo tempo registrar tudo o que estava vendo.

Cláudia observa que os registros são não só jornalísticos, mas sentimentais:

– E os sentimentos são tanto de quem teve a vida afogada como dos fotógrafos capturando aquelas cenas.

Márcio já havia chamado Cláudia anteriormente para outro projeto, “Cidade feita de rio”, com diferentes olhares sobre o Guaíba.

– Passados cinco anos daquele 2019, a beleza se transforma em ameaça, angústia e resistência – diz Márcio.

Após a feitura das fotos, ainda haverá outra etapa. Artistas visuais serão convidados para reagir às imagens e criar novas obras.

– Eles serão chamados para interagir com imagens cuja potência plástica e estética estejam a serviço da ética, com a força de canalizar sensações e fazer emergir emoções da ordem da catarse para estimular uma profunda reflexão sobre que o que aconteceu, e ainda está em curso, no Rio Grande do Sul e que uniu todos os “Brasis” em uma só identidade: a da solidariedade, mostrando a capacidade de mobilização da sociedade civil diante de uma emergência – conta Márcio.

Solidariedade essa também ressaltada por Cláudia:

– Às vezes chamamos essa enchente de pandemia, num ato falho. Nos dois casos, um momento de medo, insegurança e isolamento físico em que nos unimos de maneira nunca vista na minha vida. Na pandemia, o inimigo era o outro; na enchente, o outro foi salvação.

A ideia é que a alerta citado por Márcio leve a uma tomada de consciência, como diz o fotógrafo Jefferson Botega:

– Tentei interpretar toda esta catástrofe, organizar este caos e sofrimento de quem perdeu tudo, tudo mesmo, inclusive suas memórias, com fotografias plásticas, esteticamente atraentes. E a partir de imagens potentes, impactantes, com toda a força que uma imagem tem, fazer as pessoas refletirem sobre o que está acontecendo. É essa reflexão que traz mudanças.

Fernanda Chemale fez essa foto dos destroços das casas em meio à vegetação da Ilha das Flores, lugar que deu nome ao premiado curta de mesmo nome do diretor Jorge Furtado.
Visão aérea do município de Eldorado do Sul, um dos mais afetados pelas cheias, que se separa de Porto Alegre pelo Guaíba. Foto de Jefferson Botega.
O peixe morto no portão, sob o olhar de Zuza Sefrin.
Dona Loiva, moradora de Lajeado, perdeu a casa na enchente e todas as economias após cair num golpe na internet. Foto de Brian Baldratti, de Curitiba (PR).
Alexandre Raupp vem registrando documentos e álbuns de família perdidos em meio aos destroços
Na foto de Nathan Carvalho, o contraste: um bairro urbano que se chama Floresta, mas que se torna rio.
Nathan Carvalho registrou pai e filho em meio às aguas de tomaram conta do Centro de Porto Alegre.
As cores na foto tirada por Jefferson Botega na Avenida Getúlio Vargas, no bairro Menino Deus. Ele quis fazer uma imagem noturna. O bairro estava sem luz e sem água. A luz vermelha é de viaturas da polícia e a verde é de um drone.
Livro levado pelas águas em Porto Alegre. Foto de Nilton Santolin.
Espelho urbano: sinalização das ruas refletida na água, em foto de Nilton Santolin.
Armazéns do cais do Porto, no Centro de Porto Alegre, à beira do Guaíba. Foto de Fabiano Benedetti.