Guerra de versões
EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR
É uma das imagens mais conhecidas da história: a menina Kim Phuc, de 9 anos, corre nua por uma estrada na vila de Trang Bang, chorando após tirar as roupas queimadas pelo napalm lançado por tropas sul-vietnamitas, apoiadas pelos Estados Unidos. A foto é um símbolo do horror da guerra do Vietnã – e por extensão de todas as guerras.
Intitulada “The terror of war” (“O terror da guerra”), mas conhecida como “Garota Napalm”, a foto, tirada em 8 de junho de 1972, pelo fotógrafo Nick Ut, da Associated Press, rendeu a seu autor reconhecimento mundial, além de um prêmio Pulitzer.
Só que um documentário lançado há poucos dias no Festival de Sundance põe em dúvida o crédito, atribuindo o registro a um motorista vietnamita da NBC, Nguyen Thanh Nghé, que teria vendido suas fotos para a AP como freelancer, ou “stringer”.
Segundo o filme “The stringer”, dirigido por Bao Nguyen, a foto foi deliberadamente atribuída a Ut, alegação que a AP nega. O longa acompanha uma investigação feita no Vietnã, na França e nos Estados Unidos pelo fotojornalista britânico Gary Knight, diretor da VII Foundation.
Um dos entrevistados é Carl Robinson, o editor de fotografia no gabinete da AP na ocasião. Ele diz que recebeu a ordem de escrever uma legenda atribuindo a fotografia a Ut por parte de Horst Faas, o chefe de fotografia da AP em Saigon, capital do Vietnã do Sul. “Nick Ut. Escreva Nick Ut”, teria dito Faas, que morreu em 2012. Robinson diz que, na época, aceitou por medo de perder seu emprego. E que, depois, sentiu que era “tarde demais” para falar a verdade. E por que Faas teria feito essa exigência? Segundo Robinson, por culpa de ter enviado o irmão de Ut, Huynh Thanh My, para uma reportagem em que ele acabou morto: “Horst Faas ficou arrasado com a morte de My, e esta foi sua maneira de homenageá-lo.” Outra hipótese levantada pelo filme é a de que Faas teria atribuído a imagem a Ut porque ele era o único fotógrafo oficial da AP no local.
Também entrevistado, Nguyen Thanh Nghé diz: “Nick Ut veio comigo na missão. Mas não foi ele que tirou a fotografia… A foto era minha. Fiquei aborrecido. Trabalhei muito para conseguir, mas aquele sujeito ficou com tudo. Teve reconhecimento, prêmios”.
A produção do filme chegou a contratar a Index, organização sem fins lucrativos com sede na França, especializada em investigações forenses. De acordo com os peritos, era “altamente improvável” que Ut estivesse na posição correta para tirar a fotografia.
O diretor Bao Nguyen chama o episódio de um “escândalo por trás da criação de uma das fotografias mais reconhecidas do século XX”.
Diante da controvérsia, a AP conduziu sua própria investigação interna, falando com sete sobreviventes que estavam em Trang Bang ou no escritório da AP em Saigon naquele dia. Em declaração oficial, a agência disse: “Nos últimos seis meses, ciente de que um filme desafiando esse registro histórico estava em produção, a AP conduziu sua própria pesquisa meticulosa, que apoia o relato histórico de que Ut era o fotógrafo. Na ausência de novas evidências convincentes do contrário, a AP não tem motivos para acreditar que outra pessoa além de Ut tirou a foto.”
E o que diz a menina da imagem? Kim Phuc não se recorda do rosto do fotógrafo, mas num comunicado ela apoiou Ut: “Recusei-me a participar neste ataque ultrajante e falso a Nick Ut levantado pelo Sr. Robinson nos últimos anos… Espero que ele encontre paz em sua vida…. [Nick] não era apenas um fotógrafo. Ele é meu herói por largar sua câmera e me levar ao hospital naquele dia e salvar minha vida.”
Nick Ut, ao centro, segura a foto “Garota Napalm”, que lhe rendeu o prêmio Pulitzer. A menina nua da imagem, Kim Phuc, está do lado esquerdo da foto, à direita de Ut. Foto de Gregorio Borgia/AP. 2022.