A fotógrafa das causas sociais
MAURO VENTURA
Nas palavras da portuguesa Angêla Berlinde, curadora de arte e fotografia, Rosa Gauditano era “a mulher de todas as lutas”. Em especial a luta das populações marginalizadas. As imagens da fotojornalista tornaram-se símbolos de resistência e deram visibilidade a inúmeras causas sociais. Rosa registrou desde as prostitutas, a comunidade lésbica nos anos 1970, as greves operárias no ABC paulista e os povos indígenas até os movimentos negro e feminista.
A fotojornalista paulistana, que morreu na quinta-feira, dia 7 de agosto, aos 70 anos, de enfarte, começou sua carreira no jornal Versus, em 1976. A partir de 1978, ela começou a fotografar a então nascente mobilização dos operários paulistas, marcada por greves e paralisações. Na Zum, a revista de fotografia do Instituto Moreira Salles (IMS), Erika Zerwes, doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e pós-doutora pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, escreve que imagens como as feitas por Rosa botaram “em evidência o operário, um novo sujeito social que não tinha espaço de representação na mídia hegemônica, nem tampouco no discurso das esquerdas tradicionais brasileiras até aquele momento”. Segundo Erika, as fotos criaram uma “representação visual associada a este novo operariado, e, em retrospectiva, ajudaram a criar uma memória coletiva sobre as lutas sociais e políticas do período”. Entre os personagens retratados por Rosa, aparece o hoje presidente Lula.

Nessa mesma época, em 1978 e 1979, Rosa mergulhou em outro mundo: o do bar Ferro’s e da boate Dinossauros, em São Paulo, raros redutos das lésbicas à época. Rosa, que na ocasião tinha 23 anos, havia recebido da Veja a tarefa de fazer uma reportagem para a revista. Passou dois meses frequentando os dois locais e fotografando, das 23h às 6h.
Também na revista Zum, na matéria intitulada “Estética sapatão”, a jornalista Milly Lacombe diz: “As imagens em branco e preto revelam a estética de um movimento de amor e resistência. Os abraços, os olhares, os cigarros, os jogos de sinuca, a linguagem corporal que evocava liberdade enquanto comunicava petulância e confiança: está tudo ali, no trabalho histórico de Gauditano.”

Milly acrescenta: “Da porta do Ferro’s para fora, a sociedade continuava operando com os métodos opressores e repressores de sempre, reproduzindo dia após dia o regime da discriminação sexual. Da porta para dentro, havia um horizonte perdido e encontrado. Novas formas de amar, de viver e de ser. (…) As lésbicas ali reunidas podiam fazer o que, do lado de fora, seria proibido: comportar-se como só era permitido aos homens, esbanjar a alegria dos homens, beber em público como só aos homens era moralmente aceitável. O trabalho artístico de Gauditano no Ferro’s trouxe legitimidade a formas de existir e de amar que eram interditadas, humanizando aquele grupo coisificado e fulanizado de pessoas: o das lésbicas.”

A reportagem acabou não sendo publicada, por conta da censura imposta pela ditadura militar. Mas os registros foram mais tarde incluídos em livro, expostos na 35ª Bienal de São Paulo e, no último dia 2 de agosto, apresentados nas páginas do jornal francês “Libération”.
A documentação da comunidade lésbica, que deu visibilidade à população LGBTQIA+ em pleno período de exceção, foi lembrada pela Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos no Estado de São Paulo (Arfoc SP), que homenageou a profissional dizendo que sua trajetória também inclui um “vasto trabalho dedicado à cultura indígena, aos movimentos sociais, às lutas feministas, às greves operárias e à infância em situação de rua”.

Mais tarde, Rosa voltou suas lentes para os povos indígenas. Uma de suas fotos clássicas foi feita na aldeia Demini, em Roraima, em 1991, e mostra um indígena ianomâmi com um beija-flor. Outro de seus trabalhos, sobre os rituais xavantes, foi feito ao longo de 13 anos. Numa entrevista à artista visual e professora da PUC-PR Luana Navarro para a revista Zum, ela explicou: “Para você fazer um negócio direito, você tem que ter tempo. As pessoas têm que se sentir à vontade até o ponto em que elas não te enxergam mais e que você começa a fazer parte do grupo delas, aí que as fotos começam. Isso é uma coisa que as pessoas não entendem muito, porque hoje eu vejo essa moçada jovem fotografando com celular e é tudo igual. As pessoas não têm um tempo de convivência para fazer uma coisa diferente, para você usar uma luz diferente.”

Rosa teve passagens pela grande mídia, como Veja e Folha de S.Paulo, e por veículos independentes, como a Agência Fotograma, da qual foi uma das fundadoras, e StudioR. É autora de livros como “Índios – Os primeiros habitantes” (1998), “Raízes do Povo Xavante” (2003), “Festas de fé” (2003), “Elas por elas” (2017), “Povos indígenas no Brasil” (2011) e “A mesma luta” (2021). Rosa teve suas obras incorporadas aos acervos de importantes instituições, como o MASP e o Conselho Mexicano de Fotografia. Participou de diversas exposições no Brasil e no exterior. Rosa tem uma página dedicada a seu trabalho aqui no site Testemunha Ocular, do Instituto Moreira Salles.
Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS:
“Rosa Gauditano nos deixou. Uma tristeza imensa, já uma saudade imensa. Permanecerá entretanto, hoje e sempre, sua obra monumental, seu sorriso, seu afeto com todas e todos e sua generosa e sempre ativa dedicação e comprometimento – através de sua fotografia, sensível e ao mesmo tempo engajada e combativa – com as justas, necessárias e incontornáveis lutas e embates destes nossos tempos difíceis, onde sua voz, amplificada por suas imagens, se fez sempre presente ao lado dos povos originários, das mulheres, dos trabalhadores e da população LGBTQIAPN+ . Um exemplo de vida para todos nós.”
Mônica Maia, curadora e Produtora Cultural:
“Suas fotografias sempre foram suas lutas. Destaco o ensaio ‘A mesma luta’, trabalho feito entre os anos de 1974 e 1984 sobre a atuação das brasileiras nos movimentos sociais nos últimos dez anos da ditadura militar. As imagens se concentram nas mulheres que se uniram e foram às ruas pela igualdade de gênero e de raça, e contra a violência. Sua atuação colaborou com o rompimentos de invisibilidades históricas à qual nós, fotógrafas mulheres, nos depararamos desde sempre. Com tristeza recebemos a notícia da morte de Rosa, mas com alegria levaremos em frente todas as suas fotografias potentes e combatentes, como sua própria trajetória. Realizou importantes coberturas sobre a luta dos direitos das mulheres, a vida noturna das lésbicas em plena ditadura, a prostituição, as crianças de rua, os movimentos negros, os atos políticos como as greves no ABC, as manifestações sociais e uma documentação apaixonada pelos povos indígenas, desde 1989. Construiu memórias da nossa história, se dedicou a dar luz e voz às suas escolhas, seus temas e suas lutas. Fica a admiração e a inspiração.”

Angêla Berlinde, curadora de arte e fotografia:
“O seu olhar pousava como um beija-flor — leve, certeiro e pleno de vida. Rosa era presença rara: gargalhada que se ouvia ao longe, abraço que amparava, olhar que atravessava. Na fotografia brasileira, deixou um legado imenso e um compromisso profundo com as pessoas, as causas e as histórias que amava contar. Ai, Rosa… A tua bravura, a tua cor e a tua magia incendiar-nos-ão para sempre. Faz-nos já tanta falta: a tua energia a tua sede infinita de viver. Descansa em paz Rosinha — serás sempre da nossa tribo, em todas as lutas em todos os caminhos.”