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Um novo olhar

MAURO VENTURA

Ana Aurora Borges tinha 13 anos quando o pai, o fotógrafo Antônio Gaudério, sofreu um acidente caseiro – ele visitava a construção de uma casa da família quando caiu em um buraco, de uma altura de três metros, e bateu a cabeça no concreto, perdendo massa encefálica.

Era 2008. Gaudério tinha apenas 49 anos, tempo suficiente para se consolidar como um dos maiores fotojornalistas do país.

A vida da família mudou completamente. Gaudério perdeu por completo a memória, e teve que reaprender a andar, comer, falar. “Zerou o HD”, como a filha diz. Aos poucos, o trabalho do fotógrafo foi sendo esquecido.

– Dos 13 aos 20 e poucos anos, assisti ao engavetamento, ao apagamento do trabalho de meu pai – observa ela. – As pessoas estão perdendo a memória de suas fotos, da mesma forma que a memória dele. Aquilo me feriu num lugar muito forte.

Até que, ao escolher falar de literatura de denúncia latino-americana como tema da iniciação científica para o mestrado em Arte e Literatura na Unifesp, ela se deu conta de que tinha uma pessoa muito perto dela que trabalhava com denúncias, só que com uma câmara fotográfica. Resolveu transformar o resgate das imagens do pai em missão. Em 2019, começou a revisitar o acervo paterno. Abriu caixas e encontrou arquivos esquecidos, com negativos, filmes, disquetes, CD-ROMs, HDs. Apaixonou-se pelo que viu. Decidiu mostrar as fotos para o próprio autor delas, que passou a olhá-las com o distanciamento de quem não se lembrava mais que as tinha feito.

Juntos, Antônio Gaudério e Ana Aurora Borges têm revisitado o arquivo do fotógrafo. Foto de Flora Negri.

 

Em novembro de 2020, Aurora abriu uma página no Instagram (@antonio.gauderio) e passou a compartilhar as fotos acompanhadas do contexto em que foram feitas. Conquistou seguidores, encantados com a denúncia social e a qualidade estética contidas no material exposto.

Até que ela tomou uma decisão, que havia resistido durante muito tempo: contar a história do acidente.

– Sempre soube que essa história era muito valiosa, e que quando soltasse teria uma repercussão muito grande. Mas eu tinha uma espécie de resistência em torná-la pública, para proteger a imagem de meu pai. Não sabia como ele iria lidar, como seria reaprender a estar de novo na mídia, debaixo dos holofotes. E sempre acreditei nas fotos dele como potência por si só.

Quando ela revelou a história o assunto viralizou, indo parar em jornais e podcasts.

– É muito enriquecedor ver o trabalho dele de novo na roda.

Aurora e Gaudério receberam até um convite do Senac para fazer uma exposição, a primeira de Gaudério desde o acidente. Ela estreou neste dia 25 de setembro.

Quem também está no projeto é outro grande fotojornalista, Jorge Araújo, que tem uma página dedicada a seu trabalho neste site Testemunha Ocular. Jorge tinha sugerido a Aurora: “Você se importa de eu assinar a curadoria?” Aurora deu outra sugestão: o próprio Gaudério seria o curador, escolhendo as fotos, enquanto Jorge ficaria como cocurador, assinando a contextualização política. “Antônio Gaudério: Memória em imagens” traz mais de 30 fotos, em grande formato.

– Meu pai está absolutamente envolvido. Assina todas as fotos, vê as molduras, quer saber a qualidade da impressão.

As fotos da exposição estarão à venda, mas há ainda um serviço de atendimento para quem quiser comprar as obras de Gaudério pelo telefone (011) 9433-17057.

Além da mostra, Gaudério vai ganhar um documentário sobre sua vida e sua trajetória. “Gaudério – A estética da indignação” é um projeto do documentarista Chico Gomes e da produtora Modernista. Além disso, seu trabalho foi debatido dia 27 de setembro de 2025 numa das mesas do Festival Paraty em Foco, que contou com a participação de Aurora e da fotógrafa e pesquisadora Mônica Zarattini. Está nos planos ainda de Aurora um fotolivro.

Nascido em Ijuí, no Rio Grande do Sul, ele ganhou alguns dos principais prêmios, como Vladimir Herzog de 1993, Ayrton Senna de Fotografia de 2000 e os Prêmios Folha de Jornalismo de 1995, 1998 e 2007. Gaudério se notabilizou por pautas sociais, registrando trabalhadores rurais e pessoas invisibilizadas e que estão à margem. Denunciou a exploração de mão de obra, a prostituição infantil, a miséria, a fome, as migrações, o trabalho análogo à escravidão, a devastação da Amazônia, a poluição, como é o caso da foto do alto da página, feita no dia 16 de março de 2006, que mostra uma garça pousando na Lagoa de Carapicuíba (SP), coberta por lodo retirado do Tietê em obra para aprofundar a calha do rio. De acordo com o Ministério Público Federal, a lagoa foi contaminada por chumbo, cádmio, mercúrio e DDT, um poluente altamente cancerígeno, com a terra e o lixo trazidos do Tietê.

Seca no Nordeste: crianças brincam em bicicleta em açude seco, em Araripina (PE). 15/2/1996. Foto: Antônio Gaudério/Folhapress.

 

Aurora observa como era o trabalho do pai, que também tem uma página dedicada a seu trabalho no Testemunha Ocular.

– Ele caça a perfeição. A foto principal nunca está onde você acha que está, e sim nas sutilezas do entorno.

Então, ele fazia o que seria considerado pelos outros a foto principal e fazia mais 70 fotos nas sutilezas do entorno até chegar à foto que ele considerava a principal.

Aurora define o trabalho dela com o pai como uma relação recíproca de colaboração.

– No começo, achei que pudesse resgatar de alguma maneira as memórias dele. Mas hoje entendo que isso é fisiologicamente impossível. O que faço então com ele é mostrar as memórias da pessoa que ele era antes do acidente, para que meu pai se conecte com essa memória.

Antônio Gaudério e a filha, Ana Aurora Borges, olham uma imagem do fotógrafo. Foto de Marina Monteiro.

 

Como fotógrafo, Gaudério, hoje com 66 anos, viajava muito. Mas Aurora diz que o pai sempre foi “absolutamente presente”.

– De modo geral, as viagens eram rápidas, como exceção de uma em que ele foi para a Bolívia e ficou dois meses fora. Foi para a capital, La Paz, para entender como funcionava o tráfico de mão de obra e como viviam os imigrantes ilegais bolivianos em São Paulo, trabalhando em confecções de roupas, em jornadas diárias de 17 horas em troca apenas de cama e comida. E me levava às vezes, como quando fomos para o meio da Amazônia, eu com dez anos, para uma matéria sobre o impacto da exploração turística na região.

Aos 30 anos, a paulistana Aurora é gestora de artes. Tem uma empresa de gerenciamento artístico, a SA Criativa, que representa artistas independentes.

Ela diz que o trabalho inaugurou uma nova forma de se relacionar com o pai.

– Se a gente é nossa memória, nossos traumas e nossa experiência, o que a gente é quando perde tudo isso? Meu pai é uma nova pessoa. E nossa nova relação é muito legal, tanto quanto era a anterior.

Nesse trabalho de pesquisa e de garimpagem, diariamente eles olham fotos novas.

– Muitas são um mistério, inclusive para a gente.

Dia desses, acharam a foto de um homem carregando um espelho onde se vê refletida uma igreja. Ela publicou no Instagram e no Tik Tok, e os leitores se engajaram para ajudá-la a descobrir do que se tratava.

– As pessoas me ajudaram a localizar que a imagem no espelho é da Igreja de Santa Rita em Paraty. Mas é só o que sabemos… O resto é a beleza do mistério.

No espelho, a imagem da Igreja de Santa Rita em Paraty. Foto de Antônio Gaudério.

 

A parceria tem sido benéfica para todos: para o público e para pai e filha. Outro dia, um amigo de Gaudério perguntou a ele:

– Você sente falta de trabalhar na fotografia?

Ele respondeu:

– Poxa, mas eu trabalho na fotografia. Eu trabalho com meu próprio acervo.

 

Serviço:

Exposição: “Antônio Gaudério: Memória em imagens”

Curadores: Antônio Gaudério e Jorge Araújo

Local: Centro Universitário Senac Santo Amaro

Endereço: Av. Eng. Eusébio Stevaux, 823 (Biblioteca), Santo Amaro, São Paulo

Período: 25/9/2025 a 2/3/2026

Horário de visitação: Segunda a sexta, das 8h às 22h, e sábado, das 8h às 14h

Entrada gratuita

Classificação etária: Livre

 

Garotos do bairro de Barretos, em Niterói, usam o navio encalhado como trampolim para mergulhar na baía. Rio de Janeiro, 2001. Acervo pessoal
Policiais vigiam a favela do Morro do Dendê, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, RJ, depois de tiroteio. 2001. Folhapress/Digital
Jonas da Silva defende uma bola em campinho de futebol na cidade de João Pessoa, PB, na frente de outdoor com imagem de Cristo. 1998. Folhapress
Adolescentes usam água de bueiro perto da ponte Bernardo Goldfarb, em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, SP. 2005. Folha Imagem
Garota de programa, que se prostitui desde os 12 anos, durante entrevista em hotel de Manaus, AM. 2000. Folhapress/Digital
Rebelião de detentos no Cadeião 2, em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo: preso armado com estilete observa PMs. 1997. Folhapress
Veículos enfrentam trânsito congestionado na rodovia dos Imigrantes, ao passar por cartaz da Sabesp com imagem de praia. 1998. Folhapress
Internos da Febem formam fila após rebelião na unidade do Tatuapé, São Paulo. 2003. Acervo pessoal
Garça pousa na lagoa de Carapicuíba (SP), coberta por lodo retirado do Tietê em obra para aprofundar a calha do rio. De acordo com o Ministério Público Federal, a lagoa foi contaminada por chumbo, cádmio, mercúrio e DDT, um poluente altamente cancerígeno, com a terra e o lixo trazidos do Tietê. 16/3/2006. Foto: Antônio Gaudério/Folhapress Digital