Olhar complexo
MAURO VENTURA
Desde 2008, Bruno Itan vem fotografando o cotidiano das favelas.
– Procuro reforçar o lado bom e positivo.
Seu olhar é direcionado para mostrar a potência que existe nessas regiões do Rio.
– Há lugares incríveis. Retrato a cultura, a pluralidade, a beleza do morro, o colorido das paisagens, o sorriso das pessoas, a brincadeira das crianças, o sobe e desce dos moradores. A população local se vê retratada nas minhas imagens.

Ele se diz impressionado com a vitalidade da Rocinha, onde vive atualmente.
– A Rocinha parece que tem muito mais vida que em outras favelas. Fora o turismo, que é surreal – diz ele, que de vez em quando ganha dinheiro fazendo book de fotos com os turistas.
Mas, ele bem sabe, a realidade das favelas não é só essa. Pelo contrário. A violência está muito presente.
– Não podemos virar as costas para o lado negativo.
Foi inevitável, portanto, fotografar a Operação Contenção, que envolveu 2.500 policiais contra a facção criminosa Comando Vermelho (CV). Foi a operação das forças de segurança mais letal da história do país, com 121 vítimas, entre elas quatro policiais. Bruno conhece bem a realidade local, já que morou 15 anos no Complexo do Alemão – a partir dos 10 anos, quando veio com a mãe de Recife (PE), em busca de uma vida melhor.
Eram cerca de 6h da manhã do dia 28 de outubro, uma terça-feira, quando ele viu seu celular repleto de mensagens relatando tiroteios no Alemão. Decidiu ir até lá e encontrou um cenário de guerra, com carros queimados, marcas de tiros e moradores em pânico.
Passou quase 24 horas trabalhando.
– Fiz pela causa. A gente não faz esperando like e curtida.
Em certo momento, seguiu para a Mata da Vacaria, na Serra da Misericórdia, quando ouviu relatos de que havia mortos no local. Os parentes tinham ido por conta própria resgatar os corpos. Seguiam de motos e caminhonetes, e levavam lençóis para tapar os familiares.
– Vimos muitos corpos largados. Parecia que não tinham sido executados ali, e sim jogados depois de mortos. Não havia sangue nem marcas de confronto.

Bruno testemunhou cenas de horror.
– Vi pessoas sem cabeça, com metade do rosto desfigurado, ossos expostos, corpos sem braço ou sem perna. E muitos corpos com facadas, o que não é normal.
Depois de morar no Alemão de 2000 a 2015, Bruno mudou-se para a favela do Jacarezinho, onde viveu sete anos. Lá, cobriu a operação que deixou 28 mortos, em 2021. Na Rocinha, onde está há quatro anos, também se acostumou a registrar cenas de violência, como casas com marcas de tiros, sangue no chão, cápsulas de bala espalhadas pela rua. Mas nada se compara com o que aconteceu agora.

Após retirarem os cadáveres da mata, os moradores os levaram em caminhonetes até a praça São Lucas, no Complexo da Penha. Lá, fizeram questão de enfileirar os corpos, numa cena que lembrou a chacina de Vigário Geral, em 1993, mas muito ampliada.

A brutalidade de tudo que viu o impactou, mas, na hora das fotos, o lado profissional falou mais forte:
– Eu pensava em luz, diafragma, lente. Se deixasse a emoção tomar conta, não faria as fotos.
Mas ao baixar e editar as fotos ele sentiu o baque. O que mais o marcou da cobertura foi o cheiro de morte, que ficou impregnado em seu corpo nos dias seguintes. E o mais complicado de registrar foi a dor dos parentes. Mães desmaiando ao reconhecer seus filhos, mulheres grávidas chorando ao se tornarem viúvas, pais revoltados com o estado dos corpos. Foi difícil para Bruno não pensar que, se não fosse a fotografia, poderia ser ele um daqueles mortos.
– Perdi muitos amigos ao longo da vida. O crime só oferece dois caminhos: a prisão ou a morte.


Durante a cobertura da Operação Contenção, ele ouviu muitas pessoas preocupadas com sua segurança dizendo “cuidado, Bruno”, “espero que Deus te proteja”, “você é referência”, “quero que os jovens procurem um caminho diferente, como o seu”.
– Elas me veem segurando uma câmera e não um fuzil, e me acham um exemplo positivo para essa turma. Minha câmera e meu olhar sãos as armas que tenho para mudar o mundo.
Mas, ressalta Bruno, a falta de ofertas de lazer, cultura, educação e cursos profissionalizantes facilita a entrada de jovens no crime. Bruno começou na profissão graças ao curso Memórias do PAC, oferecido gratuitamente pelo governo federal. Tinha 19 anos e não sabia o que fazer da vida. E foi justamente a ocupação do Complexo do Alemão em novembro de 2010 a sua primeira cobertura fotográfica.

Mais tarde, em 2017, ele criou o projeto social Olhar Complexo, que oferece aulas práticas e teóricas de fotografia gratuitas a crianças e jovens da favela. O projeto também incentiva a colaboração e o intercâmbio entre moradores do Alemão e de outras comunidades. São feitos passeios fotográficos por diversas regiões, mostrando a complexidade dos lugares, com suas belezas e seus problemas. O projeto deu origem a um livro, lançado pelo Senac em 2023, com imagens feitas em dez favelas.



Bruno ressalta a importância de os fotógrafos populares mostrarem outra narrativa, que não a da grande mídia, que segundo ele tem uma visão mais estereotipada.
– Eu fotografo, mas não vou embora depois, continuo aqui, enquanto os outros profissionais voltam para casa.
Ele diz que seu trabalho virou um ponto de referência e tem uma utilidade pública.
– A galera já me conhece, usa meu trabalho para se informar em meio às operações. Para saber em que rua está tendo tiroteio, ver onde dá para sair e entrar na favela, descobrir em que ponto o filho está e como fazer para ir até lá buscá-lo. As pessoas não confiam na grande mídia, se informam mais por quem é do território.
Acostumado a cobrir operações, Bruno, de 37 anos, sente-se frustrado com mais uma ação que chama de “enxugar gelo”. Para ele, as estratégias de segurança pública baseadas somente no enfrentamento são cada vez mais ineficazes e truculentas. A política feita sempre apenas pela mira do fuzil, diz o fotógrafo, não resolve o problema. Tem uma fila de jovens para entrar no lugar dos que morreram. E os moradores vão continuar a viver sob o domínio do terror.
A seguir, outras fotos feitas por Bruno Itan durante a operação:

