Um povo ameaçado de extinção
MAURO VENTURA
Packyî, Tamanduá e Rita: eles são os três últimos remanescentes da etnia Piripkura. Eles somavam centenas, vivendo no extremo norte de Mato Grosso, na divisa com Amazonas, entre as cidades de Colniza e Rondolândia. Mas massacres e doenças trazidas pelos brancos dizimaram quase todos os integrantes, restando Packyî e Rita, que são irmãos, e Tamanduá, que é sobrinho deles.
Packyî, também conhecido como Baita, e Tamanduá são nômades, vivem em meio à floresta, num território cercado por fazendeiros e madeireiros. Rita casou-se com seu segundo marido, Aripa, de outra etnia, e nos últimos 30 anos mora numa aldeia dos Karipuna, no estado vizinho de Rondônia. É um povo à beira da extinção, já que Rita e Packyî passaram dos 60 anos, e Tamanduá dificilmente aparece, preferindo viver sozinho em meio à floresta, sem querer ser encontrado.
No último dia 8 de dezembro, o jornal francês Le Monde trouxe uma extensa reportagem do jornalista Bruno Meyerfeld contando a saga dos três, com o foco em Rita. As fotos foram feitas por Victor Moriyama, que tem uma página dedicada a seu trabalho neste site Testemunha Ocular. Ele registrou as imagens para uma matéria feita em 2023 para o New York Times, escrita pelo repórter Jack Nicas, autor da ideia de narrar a luta pela sobrevivência do menor grupo indígena do Brasil.
– A gente queria contar a história dessa pressão do agronegócio nessa terra dos indígenas isolados e, por extensão, contar a história dessas muitas terras indígenas que ainda estão na luta para serem demarcadas. Isso é vital para a preservação da Floresta Amazônica. Acaba sendo uma barreira para manter a floresta em pé – diz o fotógrafo.
A terra Piripkura está sendo desmatada devido ao avanço da pecuária e da exploração madeireira ilegal. Moriyama não sabia como seria fazer a cobertura fotográfica.
– É complicado, porque não há uma aldeia. A chance de encontrá-los era muito remota, porque eles são nômades. Mas demos muita sorte, porque naquele exato momento em que lá estivemos o Packyî estava perto da base da Funai. Vira e mexe ele vai para o mato e passa umas semanas lá – diz ele, que há dez anos fotografa a Floresta Amazônica. – Foi muito emocionante estar com ele porque eu nunca tinha estado tão perto de um povo isolado. Já fui para muitas aldeias, mas agora quase todas têm Starlink, têm lideranças organizadas politicamente, têm vivência no mundo global. Então, esse contato com os Pirapkura foi incrível, uma das experiências mais marcantes na minha vida, não pelo resultado visual, mas por imaginar como uma pessoa vive isolada na Amazônia.

Os Piripkura têm uma história trágica. De acordo com antropólogos, eles vivem há séculos na região noroeste de Mato Grosso, nas proximidades dos rios Branco e Madeirinha. Desde a década 1950, aquele é um território cobiçado. Primeiro pelos seringueiros. Em seguida, pelos garimpeiros. E, no período da ditadura militar, pelos agricultores, já que foi estimulada a colonização da Amazônia, com a construção de estradas e barragens. Os indígenas foram dizimados. Os pais de Rita morreram “de tosse e diarreia”, após pegarem doenças dos brancos. “Nos vimos cercados por campos queimados e estradas. Tínhamos que nos mudar constantemente, fugindo cada vez mais para o interior da selva”, lembra Rita ao Le Monde.
Na mesma reportagem de Bruno Meyerfeld, Packyî recorda que, anos atrás, uma embarcação dos Piripkura foi interceptada por seringueiros. Eles foram levados para a margem e decapitados. E parentes deles contavam ter sobrevivido a um massacre onde homens, mulheres e crianças foram retalhados a golpes de facão, empalados, eviscerados. Tiveram ainda os órgãos genitais mutilados e suas entranhas espalhadas pela floresta.
Rita chegou a ter dois filhos do primeiro casamento. O marido, Abaeté, morreu após contrair vermes intestinais e ter a garganta perfurada por uma espinha de peixe. Após a morte de Abaeté, Rita sofreu assédio por parte do pai e do irmão. Ela rejeitou, e Packyî acabou matando os sobrinhos. O menino, de 4 ou 5 anos, foi escalpelado. A menina, ainda amamentando, foi abandonada no meio da floresta. Após a tragédia, Rita fugiu para uma fazenda vizinha, onde foi escravizada. Trabalhava o dia todo sem nada receber. À noite, era espancada e estuprada, conforme contou ao etnólogo brasileiro João Paulo Marra Denofrio em um relatório oficial de 2012.
Em 1985, após dois ou três anos, Rita foi libertada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), e passou a liderar expedições em busca dos últimos Piripkura. Junto com ela estava o indigenista Jair Candor, cujo trabalho é demonstrar a existência dessas comunidades isoladas para proteger legalmente suas terras. Foi assim que, em 1989, eles encontraram Packyî e Tamanduá. Rita lhes ofereceu ajuda. Na matéria do Le Monde, Candor diz: “Essa mulher é extraordinária; não há um traço de vingança em seu coração.”
A história de Rita, Packyî e Tamanduá pode ser vista também no documentário “Piripkura”, dirigido por Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, disponível no canal Prime Video. No filme, Candor diz que Packyî e Tamanduá precisam apenas de uma tocha de fogo, de um facão, de um machado e da floresta em pé.
Mas eles vivem ameaçados. O que impede a invasão total de seu território são as portarias de Restrição de Uso. No caso, de uma área de 243 mil hectares, que hoje é considerada a TI Piripkura. Esse decreto provisório precisa ser renovado a cada dois anos. E para isso Candor e outros funcionários da Funai, como André Tangyp Amondawa, precisam estar sempre provando a existência dos dois últimos remanescentes dos Piripkura em sua terra. Não é fácil, porque, como diz Candor, eles são muito ágeis, rápidos e inteligentes. Na reportagem do Le Monde, o indigenista afirmou achar que não há mais nenhum outro integrante dos Piripkura, além deles dois e de Rita. “Esse povo foi extinto diante dos nossos olhos, sem que fizéssemos nada. É tudo profundamente revoltante.”

Moriyama analisa as mudanças na Floresta Amazônica nesses dez anos que tem visitado a região.
– O que eu consegui perceber nesse ano, em comparação a 2024, é que as queimadas e o desmatamento diminuíram muito. Mas as transformações são lentas, porque prevalece no Brasil o modelo de colonização da Amazônia baseado nas grandes obras. Como se a Amazônia precisasse ser colonizada… E grandes obras de infraestrutura não trazem progresso nenhum. O aumento de violência é brutal. Os índices de desenvolvimento continuam muito ruins, não tem esgoto, não tem saneamento básico, não há programas governamentais de desenvolvimento sustentável para a região. O povo amazônico vive, em boa parte, assombrado pelo fantasma da pobreza.

Segundo Moriyama, os estudos de impactos ambientais são “completamente pobres” e são feitos por pessoas que não entendem a floresta em sua complexidade, deixando de lado os povos indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, que nunca são consultados.
– Esse modelo de ocupação corta a floresta ao meio e vai isolando-a em ilhas verdes. E as pessoas, para fugir da pobreza, acabam abrindo ramais na floresta a partir das grandes estradas. É como se fosse uma espinha de peixe. Aí o desmatamento se acelera, porque as estradas vicinais servem para escoar a madeira de lá.
Mas ele lista o que vê como aspectos positivos.
– Existem forças opostas que vão se articulando e ganhando mais potência. Vi várias associações indígenas conquistando muito mais protagonismo, se organizando mais e cobrando cada vez mais medidas. A gente tem agora uma ministra indígena e o Ministério dos Povos Indígenas. E temos visto os povos da Amazônia cada vez com maior evidência, da moda à agricultura familiar.
Só que o imaginário sobre a Amazônia continua estereotipado. O ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer frases como “índio não fala nossa língua, não tem dinheiro, é um pobre coitado, tem que ser integrado à sociedade, não criado em zoológicos milionários”. Falas como essa, diz o fotógrafo, reforçam a visão pejorativa, equivocada e colonizadora sobre eles. Em contraponto, Moriyama cita o pensador indígena Davi Kopenawa, pensador e líder político dos Ianomâmi.
– Ele diz que teve num sonho a visão de que lá na frente essa terra aqui vai acabar numa grande bola de fogo. Então, quando estou fotografando as queimadas eu lembro dessa fala e sinto que isso aqui vai acabar. E é muito triste ver a floresta morrendo.

O fotógrafo vê seu trabalho como de sensibilização das pessoas para a Amazônia.
– Gostaria que as imagens tocassem o coração das pessoas e engajassem todo mundo na luta pela natureza e por essa floresta maravilhosa. Quero que conheçam a Amazônia, visitem a Amazônia, reflitam e desconstruam um pouco esse olhar colonizador que se tem. Até para honrar aquilo que Davi Kopenawa me falou uma vez, de que a gente precisa fazer uma grande aliança global para preservar a floresta. É preciso ter uma grande mobilização para cobrar dos tomadores de decisão, sejam governos e empresas, que preservem os biomas. Porque senão a gente vai acabar numa bola de fogo.
A seguir, mais fotos de Vitor Moriyama sobre os Piripkura feitas para o New York Times:

