Evandro Teixeira: uma celebração em 90 instantes
MAURO VENTURA
As imagens de Evandro Teixeira fazem parte da memória coletiva brasileira. Em quase 70 anos de profissão, ele nos levou das metrópoles aos grotões do país, das ruas aos gabinetes, das favelas aos palácios, das peladas de várzea às partidas de Copa do Mundo, das cidades às florestas, da ditadura à democracia.

Com sua câmera fotográfica, Evandro nos conduziu até Canudos, com imagens que eternizam os descendentes do massacre e revisitam os cenários marcados pelo confronto entre Antônio Conselheiro e o Exército.


O fotógrafo nos emocionou quando, no interior do Ceará, registrou o casal que levava de bicicleta o pequeno caixão do filho de seis meses para ser enterrado. Arrancou-nos um sorriso do rosto quando flagrou Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Chico Buarque deitados numa mesa de churrascaria. Transportou-nos para o Forte de Copacabana com o primeiro flagrante do golpe de 1964. Surpreendeu-nos com o clique do soldado caindo da moto em 1965, numa imagem que simbolizava a instabilidade do governo militar. Deixou-nos indignado quando revelou os estudantes presos no porão do Estádio Nacional de Santiago, no Chile, em 1973. Alegrou-nos quando mostrou meninas numa aula de balé na favela do Cantagalo, no Rio.

As filhas, Carina e Adryana Almeida, dizem com propriedade: “Evandro sempre foi movimento, presença e história.” De fato, Evandro vivia se deslocando, sem nunca se acomodar. Conservou até o fim o entusiasmo e a curiosidade de um iniciante. Fazia um editorial de moda para o jornal com o mesmo prazer com que viajava para cobrir as coleções de alta-costura em Paris. No carnaval, documentava tanto os grupos de Clóvis dos subúrbios como as tradicionais baianas das escolas de samba.



Anônimos e famosos mereciam igual atenção por parte de Evandro. Fosse um vendedor de coco ou o presidente, ele fazia sua arte com capricho e entrega.




Certa vez, Evandro explicou essa disposição com que encarava o trabalho: “Nunca disse para meu chefe: ‘Não vou fotografar buraco.’ Porque quando você trabalha em jornal, às vezes tem que ir lá fazer o buraco da rua que atrapalha a vida das pessoas. Tem fotógrafo que diz: ‘Não vou fazer uma merda de um buraco.’ Para mim tudo é importante. É você que dá valor ao seu trabalho, seja buraco, golpe militar, presidente da República”.
Evandro, presença e história
Além disso, como dizem suas filhas, parecia estar presente em todo lugar, do Chile ao sertão baiano. Graças a Evandro, tivemos o privilégio de acompanhar as visitas da rainha Elizabeth, da princesa Diana e do papa João Paulo II ao país. Testemunhamos João Goulart e Maria Teresa no palanque do discurso na Central do Brasil às vésperas do golpe de 1964. Pranteamos o corpo do Pablo Neruda. E seguimos a multidão que, ignorando o toque de recolher do ditador Augusto Pinochet, caminhou durante o enterro do poeta chileno entoando seus poemas.

E fez história, com fotos que entraram para o imaginário nacional. Em setembro de 2023, ao discursar na cerimônia de inauguração de sua exposição “Fotojornalismo e ditadura: Brasil 1964/ Chile 1973” no Museu da Memória, em Santiago, ergueu uma câmera e disse: “Esta foi a minha arma contra a ditadura no Brasil e no Chile!”.

Obra versátil
Para marcar os 90 anos que Evandro completaria no dia 25 de dezembro, apresentamos aqui 90 fotos do “rei do fotojornalismo”, como o fotógrafo Sérgio Moraes classificou o amigo. Cinquenta delas fazem parte da página de Evandro neste site e foram selecionadas por ele mesmo, quando da criação do Testemunha Ocular, em 2022. As 40 restantes foram escolhidas agora pelo documentarista Alexandre Delarue Lopes, responsável pelo processamento e pela conservação do arquivo dos Diários Associados RJ/Acervo IMS.
Estão presentes na seleção os principais temas da obra versátil de Evandro: política, esporte, questões sociais, carnaval, Canudos, religião, comportamento, cultura, trabalho, etnias indígenas, moda, denúncia. E as muitas festas populares, profanas ou sagradas, como a Missa do Vaqueiro, como se vê na foto do alto dessa página. É um tradicional evento católico em homenagem à alma de Raimundo Jacó, morto numa emboscada. A vida de Jacó foi imortalizada por seu primo, Luiz Gonzaga, que compôs “A morte do vaqueiro”.





Homenagens
Desde que morreu, aos 88 anos, no dia 4 de novembro de 2024, Evandro vem sendo celebrado de várias formas. A mais emocionante aconteceu na 5ª edição na Feira Literária de Canudos, no fim de julho deste ano, quando ele foi o grande homenageado. No evento, sua trajetória foi lembrada por especialistas em mesas redondas, enquanto crianças e jovens das escolas da região fizeram trabalhos inspirados em suas obras.
– Foi incrível ver a potência e a criatividade dos alunos – diz Carina. – Cada encontro foi um pedacinho de meu pai presente ali.
Em novembro passado, outro motivo de festejo: a Casa dos Saberes Conselheiristas da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), localizada no Parque Estadual de Canudos, ganhou o nome de Evandro Teixeira.
A mesma Canudos eternizada por suas lentes, onde um ano antes suas cinzas foram depositadas pelas filhas, mais especificamente nas águas do Açude de Cocorobó.
Baiano de Irajuba, um povoado a 307 quilômetros de Salvador, ele ganhou outra celebração em seu estado natal: uma exposição de 25 fotógrafos amigos intitulada “Uma foto para Evandro: um tributo a Evandro Teixeira”, que inaugurou no Dia Mundial da Fotografia, 19 de agosto.
Teve mais. No festival Paraty em Foco, em setembro, houve a homenagem póstuma “Relembrando os amigos: Sebastião Salgado e Evandro Teixeira”, que contou com a participação de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles, do fotógrafo Milton Guran, de Adryana Almeida e do filho de Salgado, Juliano Salgado.
E novas homenagens vêm aí em 2026, como um seminário promovido por este site Testemunha Ocular que, além de celebrar Evandro, vai discutir o fotojornalismo brasileiro e internacional diante das transformações no campo da comunicação e das artes frente à fotografia documental, seu legado e seu futuro. Serão cinco eixos temáticos numa programação de dois dias, em formato presencial e online.


Comemoração do Ano Novo na Praia de Copacabana, no Rio. 1982
Olho bom e sorte
São muitos os adjetivos com que os admiradores de Evandro se referem ao mestre. “Intuição e senso de oportunidade ajudam a explicar o talento de Evandro, que também esbanjava audácia”, diz Flavio Pinheiro, que, quando à frente do Instituto Moreira Salles, trouxe para o IMS o monumental acervo de mais de 150 mil fotos do fotógrafo. “Ele tinha o vício do instante. Desconcertou autoridades com humor, picardia e atrevimento. Enfrentou, destemido, interdições, às vezes brutais, ao seu trabalho. Desafiava perigos na instintiva procura de gestos, de ângulos, de imagens oportunas. Era um olho atento, preciso, sagaz, malandro, quase onipresente.”
Evandro preferia definir assim seu ofício: “Fotografia é um conjunto de fatores: tem que ter um olho bom, experiência, conhecimento, técnica e, fundamentalmente, sorte.” A humildade estava presente ainda em outra declaração: “Minha aventura pessoal se identifica com a aventura vivida pelo mundo. Não tenho méritos para isso, sou um homem manejando uma câmera. Quando bem operada, é um fósforo acesso na escuridão. Ilumina fatos nem sempre muito compreensíveis. Oferece lampejos, revela dores do impasse do mundo. E desperta nos homens o desejo de destruir este impasse.”


A realeza britânica
Os colegas apontam outras características, como a generosidade, a alegria, a versatilidade, a simplicidade, a competência, o caráter, a coragem. Um dos traços mais evidentes era mesmo a ousadia. Evandro não tinha cerimônia. Quando o então príncipe Charles esteve no Espírito Santo em 1991, ficou de costas para os fotógrafos ao plantar uma muda de pau-brasil. Evandro não pestanejou e gritou: “Ô, príncipe, vira pra cá, porra!”. Charles se virou. E a foto foi feita.
Em 1968, vinte e três anos antes dessa cena, ele também teve jogo de cintura para registrar a mãe de Charles, a rainha Elizabeth II, de passagem para inaugurar a nova sede do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Evandro furou o cerco da segurança e enfiou a câmera pela janela entreaberta do carro em que a rainha se ajeitava para sentar. Teve tempo de tirar a foto antes de ser derrubado e fraturar o cotovelo.
Nada que o impedisse seguir sempre em movimento, em busca do melhor, mais inusitado e mais revelador ângulo.









Outros destaques
Na seção Vida Longa do Testemunha Ocular, você encontra ainda uma entrevista em vídeo em que Evandro repassa sua trajetória. É possível também ler um artigo de Elvia Bezerra sobre o poema que Carlos Drummond de Andrade dedicou a ele. E na página do fotógrafo está um dossiê de mais de 340 páginas feito pela pesquisadora Andrea Camara Tenório Wanderley que traz a cronologia da vida e da obra de Evandro, com links para as reportagens de que ele participou.
A seguir, mais fotos de Evandro Teixeira selecionadas em seu acervo, que está desde 2019 sob a guarda do Instituto Moreira Salles:

