Ventre do Brasil
Por YNAÊ LOPES DOS SANTOS
“A História se repete. A primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Essa passagem do 18 Brumário – escrito por Karl Marx em 1852 – poderia ser tomada como uma legenda perfeita para analisar a fotografia de Luiz Morier publicada no dia 30 de setembro de 1982 no Jornal do Brasil.
A fotografia é o flagrante de uma blitz policial no Rio de Janeiro, que autuou homens negros sem nenhum tipo de respeito à cidadania brasileira. A ação é fruto de uma história de longa duração, na qual a população negra é sempre suspeita. E se isso não bastasse, essa suspeição é acompanhada pela aura da escravidão que ainda recai sobre os sujeitos negros e negras, cujos corpos continuam sendo alienados. Neste caso, estamos diante de trabalhadores, sem registros criminais, que foram amarrados pelo pescoço em pleno regime republicano, por serem exatamente o que eram: homens negros.
Numa espécie de sobreposição de temporalidades distintas, a situação captada pelas lentes do fotógrafo nos obriga a voltar no tempo e rever a longuíssima duração daquele que foi um dos maiores crimes da história da Humanidade: o tráfico transatlântico de africanos escravizados.
Gravura. Escravizados capturados pela expedição de David Livingstone, entre 1858 e 1864, seguem em direção ao Lago Niassa (África)
O contingente mobilizado por um dos mais lucrativos empreendimentos do Ocidente ultrapassou 12 milhões de pessoas. Isso mesmo. Em um intervalo de aproximadamente 350 anos, mais de 12 milhões de africanos, homens, mulheres e crianças, foram capturados, retirados de suas sociedades de origem, escravizados e transportados para as Américas para comporem a mão de obra que sustentou o sistema colonial e o início da economia capitalista.
No território brasileiro, esse comércio alcançou cifras impressionantes. Aproximadamente 5 milhões de pessoas oriundas de diferentes localidades da África passaram por esse mesmo processo de apresamento e escravização, para depois de uma travessia oceânica funesta encontrarem uma terra que os receberia como escravizados. Uma condição jurídica racializada que permitiu que africanos e seus descendentes fossem explorados numa sanha jamais vista, erguendo boa parte do mundo e das fortunas que conhecemos hoje.
Um ciclo de uma violência que, de tão sistêmica, era quase “natural”. Sendo assim, não nos alarmemos com o fato de a própria ideia de Brasil – aquela elaborada a partir de 1822 e ressignificada desde então – ter nascido na aposta dupla da manutenção da escravidão e do infame comércio.
Nós nascemos desse comércio de gente. Uma tragédia sobre a qual preferimos não falar, mas que se apresenta na nossa pretensa democracia racial, e talvez no embuste do nosso espanto frente à perpetuação do racismo forjado séculos atrás.
A farsa da qual nos fala Marx não está apenas na reedição, em 1982, de condições análogas à escravidão, mesmo depois de, naquela altura, ter se passado quase um século da abolição. A mentira está nesse nosso compadecimento cínico, que na realidade sabe muito bem que, a depender da cor da pele do sujeito, a tragédia pode sempre lhe bater à porta.
Admitamos: ver imagens reais de homens negros amarrados pelo pescoço em plena década de 1980 é uma espécie de déjà vu sinistro, que deveria nos levar ao questionamento: afinal, que país é esse? Como um país que ensaiava sua construção democrática e cidadã é o mesmo país no qual representantes do Estado se sentem autorizados a aprisionar homens negros, como se a escravidão ainda fosse vigente por aqui?
Essas são perguntas que foram feitas durantes décadas pelos diferente movimentos negros do Brasil. Organizações formadas por homens e mulheres negros, que não se contentaram com a corda no pescoço. Que não se curvaram aos lugares previamente determinados. Que não naturalizaram a escravidão e suas mazelas como a única forma de pertencimento da população negra brasileira.
O olhar de Luiz Morier dialoga diretamente com essa percepção mais profunda do Brasil. Um país fundado no racismo e lapidado pela escravidão. Um país no qual a própria ideia de poder passa pela autorização da opressão e da exploração de determinados sujeitos. Um país cujo ventre era e continua sendo um navio negreiro.
Como bem disse Castro Alves, ainda “estamos em pleno mar”.
Ynaê Lopes dos Santos é professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de “História da África e do Brasil Afrodescendente” e de “Além da Senzala”.