Os mortos de Canudos
FRANCISCO FOOT HARDMAN
De Canudos vencida, quem nos interroga?
Poucas imagens fotográficas foram feitas da Guerra de Canudos. Das três primeiras expedições policiais-militares enviadas para massacrar os rebeldes, entre novembro de 1896 e março de 1897, nada se registrou. A quarta expedição do Exército contrata como fotógrafo-expedicionário Flávio de Barros, que parte de Salvador a 30 de agosto, passa por Queimadas e Monte Santo, e chega a Canudos a 26 de setembro, onde permanece até a rendição e destruição do arraial, com execução da quase totalidade dos prisioneiros. As 70 fotografias que tirou e depois preservou em dois álbuns trazem o selo dominante da instituição vencedora. Cerca de dois terços delas dedicam-se à presença do Exército. Do terço restante, metade das imagens registram o território sertanejo de Canudos e povoados vizinhos. A outra metade aborda cenas da guerra, com o cuidado previsível de evitar imagens de combates e extermínios.
Quando a jovem República brasileira quis silenciar para sempre Canudos, inventou-se a versão conspiratória de que se tratava de um movimento monárquico restauracionista, o que documentos e fatos nunca atestaram. O outro modo de exclusão deu-se pelo uso genérico da palavra “jagunço” para designar indistinta e negativamente aquela massa de despossuídos, sem lhes conceder qualquer direito à voz ou à visibilidade. Nossa busca, aqui, foi pelos rastros dessas possivelmente duas dezenas de milhares de pessoas que teimam ainda em nos interrogar sobre seu extermínio precoce da nossa história.
Das fotos de Flávio de Barros, a que talvez seja mais conhecida é “Jagunços Prisioneiros”, que pode ser vista no alto desta página e logo abaixo. Há uma grande imprecisão em sua legenda. Pois a enorme maioria dos que ali figuram são mulheres, com muitas crianças. Os homens, em menor número, estão ao fundo. Tanto Euclides da Cunha quanto o jornalista Favila Nunes, na Gazeta de Notícias, destacarão a violência da cena, que se deu após a rendição de 2 de outubro. O desaparecimento dessas centenas de espectros – que em muito lembram imagens contemporâneas de refugiados – já no dia seguinte é forte indício de seu extermínio.
Entre as 70 fotos que Flávio de Barros tirou estão também as três abaixo. A primeira é “Boia na Bateria do Perigo”. Esse batalhão de artilharia recebeu o apelido porque estava na frente de combate, muito bem armado. Do lado de fora da cabana em que cinco militares se alimentam, no canto inferior direito, três crianças nos olham com gravidade. O menino de pé, as duas meninas agachadas, uma delas com o rosto semioculto por uma rede. Seriam irmãos? Órfãos de Canudos? “Jaguncinhos”, certamente, como eram chamados pelos comandantes, que os ofereciam para serem levados e adotados pelos vencedores.
A segunda foto abaixo é “Corpo Sanitário e uma Jagunça Ferida”. Sim, o destaque é para o Corpo Sanitário, como parte da corporação armada, capaz de tratar doenças e curar feridas, não só dos soldados, mas, também, de uma mulher nomeada “jagunça ferida”. A desproporção numérica e de gênero fala por si só. Qual o mal que acometeu a mulher, que nos olha desconfiada? Mas o que estranha e desequilibra toda a cena é o rosto de outra mulher no canto inferior direito, mão ao queixo, coberta de panos. Seu olhar incômodo é signo forte de que a posteridade saberá de que ali nada está bem.
Por fim, a terceira foto é “Cadáveres nas Ruínas da Canudos”. O caráter desfocado dessa imagem terá sido intencional? Entre restos de barracos de pau a pique, figuras humanas esmaecidas parecem desoladas como o conjunto da cena: cadáveres mal se distinguem de galhos espalhados, potes de barro, pedaços de taipa, terra seca. Finda a guerra do Sertão, corpos insepultos posam para seu próximo esquecimento. Mas não era justamente este o plano?
Francisco Foot Hardman é formado em Filosofia pela USP e Professor do Pós-graduação em Teoria e História Literária. É autor de de “Trem Fantasma – a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva” e “A ideologia paulista e os eternos modernistas”.