Mentes treinadas, olhos atentos
HÉLIO CAMPOS MELLO
Inteligência Artificial não é coisa nova. Seu embrião foi regado nos anos 1950, quando Alan Turing, matemático inglês, desenvolveu e plantou as bases para a ciência da computação, onde hoje são desenvolvidos os algoritmos e a formação dos sistemas que podem realizar tarefas normalmente executadas por seres humanos. Como, por exemplo, os carros fabricados por Elon Musk.
A fotografia e o fotojornalismo também foram muito beneficiados pela IA. Ela fez falta a Roger Fenton, um inglês que inaugurou o fotojornalismo em 1854/55 na Guerra da Crimeia, uma coalizão dos impérios Otomano, Francês, Britânico e Reino da Sardenha contra o Império Russo. Ele fez ótimos retratos das tropas inglesas. Eram, em sua maior parte, fotos posadas dos generais, dos soldados, dos acampamentos, dos canhões feitas em intervalos de batalhas. Fotos hoje leiloadas a preços bem altos.
Já na era moderna, lá pelos anos 1920/30, Erich Salomon foi o cara. Judeu alemão que morreu em Auschwitz, em 1944, começou a fotografar com 41 anos. Usava uma câmera Ermanox, pequena para a época, tanto que ele a escondia embaixo do chapéu. Ok, era uma cartola. Era uma 4,5 x 6, com uma lente 105mm/1.8, muito luminosa. Salomon fotografou, em 1930, as negociações em Haia que decidiram como a Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, iria pagar o que lhe foi determinado pelo Tratado de Versalhes.
As leicas e as zeiss contax 35 mm vieram logo depois. Robert Capa cobriu com elas a Segunda Guerra Mundial. Depois veio o Vietnã, a derrota americana, com o trabalho e o sacrifício dos fotojornalistas que mudaram a opinião publica nos Estados Unidos, o que provocou a retirada das tropas. O impacto do fotojornalismo para a civilização é impossível de ser calculado.
Com o desenvolvimento da Inteligência Artificial a partir de 1950, a transformação tecnológica foi radical e acelerada – até chegar aos dias de hoje, com os celulares e suas câmeras com qualidade cada vez maior. Evidentemente que fotografias como as de esportes, por exemplo, ganham muito em precisão e qualidade com a rapidez dos autofocos e a alta definição das lentes. Helicópteros não são mais necessários, os drones dão conta das fotos aéreas com louvor. Scanners e laptops fazem transmissões em tempo real.
Cito uma experiência pessoal que me impressiona, pois mostra a velocidade das transformações tecnológicas que vivemos. Em 1991, trabalhando na Agência Estado, cobri a Guerra do Golfo, no Iraque, Kuwait, Arábia Saudita e Jordânia. Passei dois meses com 75 quilos de equipamento nas costas. Câmeras, lentes, filmes, preto e branco, negativos em cores, químicas para revelação no processo C41, com cinco banhos se a memória não me falha, máquina de transmissão de fotos, aquecedor para manter a temperatura dos banhos etc.
Hoje não sei o tamanho da tralha nas bolsas dos nossos dois Pullitzer, Mauricio Lima e Felipe Dana, e de Yan Boechat, em suas viagens cobrindo conflitos mundo afora, produzindo material exemplar. Imagino que seja a metade. Imagino.
E se você estiver por perto de seja lá qual for o evento e com um celular bom de câmera – hoje todos os novos são – dá para trazer notícia.
Mas isto não arranha o fotojornalismo, que é muito importante e continuará sendo. O fotógrafo cidadão tem o seu espaço, mas a banalização das redes sociais ressalta o trabalho de quem, por dever de ofício, vem treinando a mente e os olhos. Ainda são os fotojornalistas que vão à Ucrânia e ocupam as laterais dos campos de futebol.
Até aí tudo são flores. Mas como a coisa andou muito rápido, o medo é que tal progresso saia de controle e, por conta própria, perdão, por conta de cálculos e algoritmos próprios, substitua empregos e agilize cada vez mais as máquinas de guerra, já suficientemente ágeis e mortais, entre outras barbaridades até agora só aos cuidados da ficção científica. E o botão de alarme foi acionado pelos próprios responsáveis pela IA.
O respeitado instituto Future of Life, de Cambridge, nos EUA, que tem como missão declarada “reduzir os riscos globais catastróficos e existenciais enfrentados pela humanidade” e como alvos a Inteligência Artificial, a biotecnologia, as armas nucleares e a mudança climática, divulgou recentemente um documento em que pede uma pausa de seis meses no desenvolvimento da IA, assinado por, entre outas personalidades, Elon Musk, sim, aquele dos carros acima citado, e por Steve Wozniak, cofundador da Apple.
Dizem eles: agora que a Inteligência Artificial contemporânea compete com humanos nas tarefas gerais, temos que nos perguntar: devemos permitir que máquinas inundem nossos canais de informação com propaganda e mentiras? Devemos automatizar todos os trabalhos, incluindo os que são devidamente cumpridos? Devemos desenvolver mentes não humanas que possam nos substituir?
Lá naqueles primórdios do fotojornalismo havia um cara importante, Stefan Loran, um húngaro, contemporâneo do Erich Salomon, que foi editor da Weekly Ilustrated, na Inglaterra. Ele dizia, e isto vale para hoje, que um fotojornalista não podia armar uma foto, mas, sim, registrar os eventos da maneira que aconteciam.
E a manipulação sempre existiu. Há um livro, “Making people disappear: An amazing chronicle of photographic deception”, de Alain Jaubert, que publica as fotos de antes e de depois. Entre elas há uma de um palanque na União Soviética, com Leon Trotsky e sem ele, apagado da foto depois de ter caído em desgraça. Isto antes, muito antes, do Photoshop. Acho que, quanto melhores as ferramentas, melhor. O que há de se cuidar é da ética de quem as pilota.
Mauro Ventura, editor do site Testemunha Ocular, me pediu para comentar sobre os desafios que o fotojornalista enfrenta diante da Inteligência Artificial. Achei por bem perguntar ao próprio ChatGPT. A resposta: “Apesar dos benefícios trazidos pela inteligência artificial (IA) no fotojornalismo, também existem desafios significativos que a área enfrenta:
1. Autenticidade: Com o avanço das técnicas de IA, como deepfakes, há um aumento no risco de manipulação de imagens e vídeos. Isso pode levar à disseminação de notícias falsas e comprometer a confiança do público no fotojornalismo. É essencial que os profissionais estejam atentos e implementem mecanismos de verificação para garantir a autenticidade das imagens divulgadas.
2. Viés algorítmico: Os algoritmos de IA utilizados na análise e classificação de imagens podem ser influenciados por preconceitos e desigualdades existentes na sociedade. Isso pode resultar em categorizações errôneas ou distorcidas das imagens, perpetuando estereótipos e injustiças. É necessário garantir a transparência e a equidade nos sistemas de IA usados no fotojornalismo.
3. Privacidade e consentimento: Com a coleta e análise de grandes quantidades de dados visuais, é fundamental respeitar a privacidade das pessoas retratadas nas imagens. Além disso, é necessário obter o consentimento adequado ao capturar e publicar fotografias de indivíduos em situações sensíveis ou vulneráveis.
4. Desumanização: O uso excessivo de IA no processo de captura e edição de imagens pode levar à perda da singularidade e da perspectiva humana. O fotojornalismo tem como objetivo transmitir a experiência humana e contar histórias que conectem as pessoas emocionalmente. É importante encontrar um equilíbrio entre a automação e a habilidade artística e interpretativa dos fotógrafos.
5. Desafios éticos e legais: A utilização de IA no fotojornalismo levanta questões éticas e legais complexas, como direitos autorais, propriedade intelectual e privacidade. É necessário estabelecer diretrizes e regulamentos claros para orientar o uso responsável da IA nesse contexto. Enfrentar esses desafios exige uma abordagem responsável e ética para integrar a IA no fotojornalismo. A colaboração entre profissionais de fotojornalismo, especialistas em ética de IA e legisladores é fundamental para garantir que a IA seja usada para fortalecer, em vez de prejudicar, a qualidade e a integridade do fotojornalismo.”
Assim me respondeu a inteligência artificial.
Hélio Campos Mello é fotógrafo e jornalista, tendo passado por algumas das mais importantes redações do país. Trabalhou como fotojornalista nos jornais Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Última Hora, e nas revistas IstoÉ, Senhor e Veja. Foi Diretor de Fotografia da Agência Estado. Como jornalista foi secretário de redação da revista Senhor, diretor de redação da revista IstoÉ e fundador e diretor na revista Brasileiros.