Tempos extremos
MAURO VENTURA
O ano de 2024 foi marcado no Brasil por enchentes, secas e incêndios. A crise ambiental afetou de Norte a Sul do país. O Rio Grande do Sul, por exemplo, sofreu seu maior desastre climático. As chuvas atingiram 85% das 486 cidades gaúchas, afetando 2,4 milhões de pessoas no estado e deixando como saldo 183 mortos e 27 desaparecidos. Por outro lado, o ano mais quente já registrado no Brasil provocou ondas de calor que causaram recorde de seca extrema na maioria dos estados.
O planeta mais aquecido resultou em escassez de água em cinco grandes bacias hidrográficas do país. O problema foi particularmente dramático na Amazônia, cujos rios enfrentaram a pior seca desde o início da série histórica. A reboque da seca veio o crescimento do número de queimadas, com grande número de focos de calor. A Amazônia viveu sua mais dramática temporada de queimadas, registrando 140.328 incêndios em 2024, 42% a mais do que no ano anterior. A fumaça chegou a alcançar lugares distantes, como Rio Grande do Sul e São Paulo, atingindo 80% do Brasil.
Além da Amazônia, outros biomas também sofreram. O Cerrado teve 81.468 focos de incêndio, seguido por Mata Atlântica (21.328), Caatinga (20.235), Pantanal (14.498) e Pama (424).
Além de fenômenos naturais como o El Niño, outro fator contribuiu para o drama – segundo cientistas, a maioria absoluta de incêndios teve origem humana. Ou seja, foram provocados para limpar a terra e usá-la para a agricultura.
Como era de se esperar, os problemas foram amplamente documentados pelos fotógrafos que têm páginas no site Testemunha Ocular. A seguir, eles contam sobre como foi registrar os efeitos da crise climática em 2024.
Raphael Alves, nascido em Manaus, documentou em setembro, outubro e novembro a seca nos rios Negro e Solimões, e os incêndios florestais no município de Iranduba, no Amazonas.
Raphael, que desde 2008 cobre o problema das secas, resume o drama. “É muito triste. A gente vê o pessoal precisando de água, isolado, com dificuldade de transporte, crianças em área rural onde a lancha escolar já não passa tendo que andar dois, três quilômetros, pensando em não ir mais para aula até isso passar. Os ciclos de cheia e vazante são normais nos rios, só que eles estão cada vez mais fortes e vez mais frequentes. A gente teve uma seca recorde em 2010. O recorde foi batido em 2023, depois de novo em 2024. Estive com um senhor, Isaque, que mora numa casa flutuante no Lago do Puraquequara. Ele me contou que, antigamente, puxava somente em outubro a casa flutuante para a área onde eles ficam quando seca. Ano passado, ele já teve que puxar em setembro. Esse ano ele antecipou ainda mais, 16 dias. Puxou na última semana de agosto. A seca está mais extrema, está muito rápida.”
O fotógrafo fala das dificuldades de trabalhar na região. “E é desgastante do ponto de vista físico. A gente enfrenta sol, anda para caramba para chegar aos lugares que estão isolados, atola na lama. Às vezes você vai de barco até um certo lugar, depois tem que pegar uma canoinha. Aparecem bancos de areia onde não se espera. E cada vez que o barquinho de madeira bate num banco de areia e impressão que você tem é de que vai cair.”
Josué Oliveira lamenta seu barco encalhado já no fim de agosto, na comunidade Pesqueiro (AM). Foto: Raphael Alves.
Um barqueiro navega com dificuldade pelo Lago do Aleixo, região do encontro das águas dos rios Negro e Solimões. Foto: Raphael Alves.
Michael Dantas, também nascido em Manaus, esteve no Acre em setembro e outubro, fotografando para a AFP e para a plataforma de jornalismo Sumaúma.
Michael cobre a questão ambiental há cerca de dez anos. Ele diz: “Este ano as queimadas estão mais intensas. No Amazonas, por exemplo, que é onde eu moro, antes era pontual, só no Sul do estado que se tinha queimada. Hoje, não, próximo de Manaus mesmo, até dentro da cidade, tem queimada. E a fumaça igualmente está cada vez mais forte. Isso impacta diretamente na saúde das pessoas, em especial crianças e idosos, que estão sofrendo mesmo. A gente está tendo o pior ar para respirar no mundo. O céu está todo branco. E, com a seca, os moradores estão sofrendo muito. Perderam o alimento. O peixe não está mais na porta da casa deles. A canoa não chega mais à porta de casa também. E eles são obrigados a caminhar naquela praia deserta, com areia quente, carregando água.”
Ele fala das dificuldades da cobertura: “Muita fumaça, muito calor. Para chegar aos lugares é complicado, porque aqui é tudo muito longe. E se torna caro viajar pela Amazônia. Eu fiz a última viagem de carro. Saímos de Manaus, percorremos a BR-319 inteira. Mais de quinze horas de estrada. Tivemos que levar balde de gasolina e mangueira no carro, porque no trecho do meio não tem posto.”
Victor Moryama esteve em setembro em Brasília e no Acre. Ele conta:
“Em Brasília a situação estava muito ruim. No avião que me levou até o Acre vi muita coisa de fumaça e de fogo. E quando cheguei ao Acre quase não consegui pousar. Eles tinham cancelado um voo e estavam avaliando se ia dar para aterrissar em Rio Branco por causa da visibilidade. Foi a primeira vez que passei por isso. Fui para a terra indígena do rio Gregório, do povo indígena Yawanawá, subindo e descendo de barco o rio, e lá também tinha muita fumaça. Nos dez dias que fiquei, não teve céu claro nenhum dia, todo tempo ele estava encoberto por uma camada de cinza. A estrada que eu peguei, a BR-19, que liga Rio Branco à Cruzeiro do Sul, estava também com muitos pontos de incêndio e fumaça. Numa cidade que passei, com muitos polos de queimada, fui à Secretaria municipal de Meio Ambiente e disseram que não havia nenhum tipo de operação de fiscalização. Despreparo total dos órgãos municipais, estaduais e federais. A situação era caótica.”
Uéslei Marcelino documentou para a Reuters as queimadas no Planalto Central e no Pantanal.
Nascido e criado em Brasília, o fotógrafo Uéslei Marcelino diz nunca ter visto incêndios com essas proporções e com tamanha frequência acontecerem na região do Planalto Central. Acostumado a registrar queimadas país afora, ele se mostrou impressionado em ver como o Cerrado passou a Amazônia em destruição. Ele esteve em setembro em Brasília e conta que a qualidade do ar “nunca ficou tão ruim”: “O cheiro da fumaça e a fuligem estavam em todos os lugares na cidade.”
Ele também percorreu em junho o Pantanal em barco de pesca, em cima de trator e até montado a cavalo para registrar o pior incêndio que já atingiu a região. “A situação era extremamente difícil. Mesmo as regiões alagadas próximas a Corumbá, no Mato Grosso do Sul, estavam em chamas.”
O fotógrafo documentou a fumaça no horizonte, o fogo por todos os lados, o drama dos moradores e o horror dos animais consumidos pelas chamas. Uéslei faz um alerta: “O que me indigna é a atitude de como estamos ‘normalizando’ essas situações extremas e adaptando nossas vidas, caminhando para um fim trágico nessa de aceitar que o fogo é um fenômeno que acontece naturalmente todos os anos, mas não é. É perigoso se acostumar com isso, achar que é normal. Temos que mudar esse jogo.”
Daniel Marenco, gaúcho, fala sobre como foi cobrir as enchentes em seu estado:
“É assustador. É como se fossem as tragédias de Teresópolis, do Morro do Bumba, de Katmandu, de Alagoas, de Brumadinho, de Mariana, todas juntas e ampliadas”, diz ele, citando as chuvas na região serrana do Rio, o deslizamento na favela em Niterói, o terremoto no Nepal e o rompimento da mina da Brasken em Maceió e das barragens em Minas. Fotógrafo desde 1999, ele tem experiência em cobrir desastres. Mas nada o preparou para o que o viu. “Cidades inteiras destruídas. Nenhuma das quaisquer situações em que já estive como jornalista chega perto do que vi no Sul. É um cenário assustador de um futuro que já não imagino qual será.”