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O dia do horror

MAURO VENTURA

Assim que se deparou com a fila de corpos estendidos no chão da praça São Lucas, no Complexo da Penha, o fotógrafo Eduardo Anizelli, da Folha de S.Paulo, lembrou-se de duas imagens que se tornaram clássicas como símbolos de horror no Brasil: a foto que sua colega Marlene Bergamo registrou dos presos mortos em Carandiru, em 1992, e a que Márcia Foletto fez das vítimas da chacina de Vigário Geral, em 1993, para o Globo.

Com o agravante de que o número de pessoas agora era muito maior: são até o momento 121 mortes, incluindo a de quatro policiais, na operação mais letal da história do país, superando até a de Carandiru, com 111.

Na véspera, Eduardo passara o dia na região fotografando traficantes sendo presos, policiais em operação e caveirões levando feridos aos hospital Getúlio Vargas. Mas ainda não tinha aparecido nenhum corpo. Até que, na porta do hospital, parentes das vítimas lhe disseram: “Você tem que ver a covardia que estão fazendo lá em cima, tem que ver de perto, não adianta só fazer foto aqui”, disse uma mulher, referindo-se à Mata da Vacaria, na localidade da Serra da Misericórdia.

No dia seguinte, resolveu chegar cedo ao Complexo da Penha. Passava pouco das 5h da manhã, ele estava próximo à praça São Lucas quando recebeu um telefonema do colega André Coelho, da EFE, que lhe disse que já havia 37 corpos na frente da Associação de Moradores. André acrescentou: “Os moradores estão querendo subir com a gente na mata.” Eduardo disse que já estava chegando e pediu que o esperassem. Ao chegar, um homem, que estava usando uma caminhonete para trazer corpos da mata, falou: “Se vocês quiserem subir é agora.” Os dois toparam, junto com dois cinegrafistas.

– Passamos por barricadas e por traficantes, até encontrarmos vários corpos espalhados pela mata – diz Eduardo.

Em vez de bombeiros e socorristas, eram os próprios moradores que estavam trazendo as vítimas do alto da Serra para baixo. Havia até crianças participando das buscas. No lugar de ambulâncias, o que se via eram caminhonetes particulares fazendo o trabalho de remoção. A certa altura, Eduardo recebeu a informação de que havia um caveirão da PM embaixo e pensou: “Se a polícia entrar de novo vamos virar um alvo fácil.” Ele e Coelho decidiram descer. Viajaram pendurados no estribo, um de cada lado, já que a caminhonete estava com a caçamba cheia de corpos empilhados. No caminho de volta, foram parados por traficantes, que quiseram ver as vítimas – reconheceram colegas do crime entre elas.

Mulheres identificam parente morto na Mata da Vacaria, no Complexo da Penha. Foto de Eduardo Anizelli/Folhapress

 

Já de volta à praça, fez fotos de drone que mostram a fileira de cadáveres sobre o asfalto. Moradores em situação de rua e até crianças ajudaram a retirar os corpos dos carros. A própria comunidade fez questão de mostrar os parentes mortos espalhados pelo chão para evidenciar ao mundo a extensão do massacre.

Eduardo viu corpos com marcas de tiro e outros que pareciam ter ferimentos a faca. Havia quem estivesse com o rosto desfigurado por causa da bala. Encontrou na praça Márcia Foletto, que tinha feito com drone a fotografia do alto dessa página, e comentou com ela o pensamento que lhe ocorrera mais cedo. Márcia, ao se deparar com os corpos, também havia se lembrado da foto que fez mais de 30 anos atrás em Vigário Geral.

– Quando cheguei ao Complexo da Penha os corpos já estavam lado a lado na praça. Eram muitos, alguns iam sendo levados (para o IML) e outros chegavam (da mata). Antes de ver de perto e de baixo a cena, eu subi o drone, já imaginando a foto, e já lembrando da imagem de Vigário Geral – conta a fotógrafa do Globo. – Uma tristeza que ainda hoje, mais de 30 anos depois, essa guerra insana ainda produza cenas como essa. Saí de lá bastante angustiada, pela dor daqueles familiares e pela constatação que estamos longe de uma solução.

Márcia acredita que a cobertura de incursões da polícia às favelas está mais complicada hoje em dia:

– O ambiente é mais tenso, o armamento é de guerra, e a imprensa não tem mais aquela espécie de salvo-conduto que tinha há décadas atrás. Nem sempre somos bem-vindos nessas coberturas.

Acostumado a registrar operações policiais, Eduardo diz que foi “muita adrenalina” participar da cobertura.

– Foi a primeira que deu tipo um “nossa, caramba”.

Ao longo do dia, quando suas fotos foram publicadas no site da Folha, amigos, parentes e colegas mandaram mensagens preocupadas, dizendo “se cuida”, “como você está?”, “está tudo bem?”. Mas, em termos de risco, o dia anterior, quando houve o tiroteio, havia sido bem pior.

– Era muito tiro. Tentamos subir até a mata numa caravana de jornalistas, mas a policia não deixou.

Foi aí que ele decidiu chegar muito cedo ao Complexo no dia seguinte, porque percebeu que iam aparecer muitos corpos. Como de fato apareceram, como percebeu quando subiu com André Coelho a mata.

Eduardo Anizelli: fotógrafo da Folha há 17 anos

Nascido em Londrina, no Paraná, Eduardo trabalhou sete anos na Folha de Londrina antes de começar na Folha de S.Paulo, onde está  há 17 anos – completa 18 em fevereiro. Nos últimos quatros anos, ele tem trabalhado na sucursal do Rio do jornal.

Aos 43 anos, Eduardo comenta a diferença entre as coberturas de violência no Rio e em São Paulo:

– Na sede, em São Paulo, eu cobria muito a violência entre PCC e a Rota (tropa de elite da PM com histórico de ações violentas).  Lá, você não tem acesso a violência como no Rio. A polícia bloqueia, você não consegue chegar perto, a coisa toda é mais isolada. Teve uma vez em que a Rota matou sete ou oito, e a gente só conseguiu se aproximar muito depois, quando a perícia já tinha terminado o trabalho. No Rio, é mais escancarado, você tem muito mais acesso às cenas de violência.

Ele dá como exemplo uma foto sua, “Cachoeira de sangue”, feita no Rio para a Folha em 2024 e que acaba de ganhar menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog, que mostra um blindado da polícia escorrendo sangue, após uma operação, também no Complexo da Penha.

– Um policial estava tranquilamente lavando o caveirão na frente do hospital Getúlio Vargas.

A foto “Cachoeira de sangue”, feita em 2024 e premiada no Vladimir Herzog. Foto de Eduardo Anizelli/Folhapress

Acostumado a cobertura de violência, Eduardo diz que em alguns casos os parentes se revoltam com o trabalho da imprensa, em outros pedem ajuda, como foi o caso de agora.

– Hoje perceberam que nosso trabalho estava ajudando a mostrar a realidade.

 

Márcia Foletto

Em 1993, Márcia Foletto fez uma foto que foi parar em destaque na primeira página do Globo e viralizou. Foi feita logo após a chacina de Vigário Geral e mostra 18 das 21 vítimas inocentes do massacre cometido pelos policiais conhecidos como Cavalos Corredores.

Márcia, que tem uma página dedicada a seu trabalho no site Testemunha Ocular, lembra:

“Quando o primeiro corpo foi retirado da comunidade, os moradores não deixaram que ele fosse colocado no rabecão. Pediram que os bombeiros esperassem até que todos os outros fossem retirados. Aos poucos, foram chegando os demais corpos. Eu e outros fotógrafos e cinegrafistas nos posicionamos em cima do muro que divide a linha do trem. Fiquei muitas horas em pé e fomos vendo aquela imagem, das vítimas lado a lado, sendo construída aos poucos.”

 

Marlene Bergamo

Em entrevista à Folha, Marlene Bergamo, que tem uma página dedicada a seu trabalho no site Testemunha Ocular, falou de sua foto feita em 1992 após o massacre de Carandiru.

“Me mandaram ao Instituto Médico-Legal para tentar fotografar os corpos. Vesti uma roupa mais simples e a rasguei um pouco. Fiz um furo numa bolsa, encaixei uma câmera e entrei na fila de reconhecimento dos corpos. Entrei num salão com um monte de caras mortos e fiz a foto.”

A imagem ganhou as capas de jornais, conquistou vários prêmios e correu o mundo.

 

A seguir, outras fotos de Eduardo Anizelli feitas no Complexo da Penha:

 

Os próprios moradores trouxeram os corpos da mata e os enfileiraram na Praça São Lucas, no Complexo da Penha. Foto de Eduardo Anizelli/Folhapress
Parentes e amigos retiram os corpos dos homens que morreram em confronto com a Polícia na Mata da Vacaria, no Complexo da Penha. Foto de Eduardo Anizelli/Folhapress.
Tatuagens no braço de um dos 117 mortos na operação mais letal da história do país. Foto de Eduardo Anizelli/Folhapress.
Os corpos das vítimas da operação policial foram enfileirados no Complexo da Penha pelos próprios moradores. Foto: Márcia Foletto/Agência O Globo