Fração de segundos
BERTHOLDO DE CASTRO
Lado a lado, quase colados, os dois homens caminham pela ponte. Um à frente, outro mais atrás. O primeiro vê adiante; o segundo o enquadra na lente da Rolleiflex. De repente, um barulho. O presidente assusta-se. Vira o rosto para a esquerda, enrosca as pernas, enrosca os pés. O fotógrafo clica uma chapa, a única. E numa fração de segundos fica retratado de corpo inteiro o governo Jânio Quadros. A foto dispensa legenda. E grudou-se ao personagem.
A fotografia foi feita por Erno Schneider em 21 de abril de 1961 pouco antes do encontro entre o presidente brasileiro e o argentino Arturo Frondizi na ponte sobre o Rio Uruguai, ligando Uruguaiana a Paso de los Libres. Quando retornou ao Rio, Erno descobriu: o Jornal do Brasil não publicara a foto. Buscou no arquivo e a copiou.
Depois, ela saiu em 23 de agosto de 1961 (dois dias antes da renúncia de Jânio) no jornal para anunciar exposição no Aeroporto Santos Dummont – e sempre sumia. Erno a inscreveu no Prêmio Esso de 1962 e venceu, sendo editada na primeira página em 14 de abril de 1962 com o subtítulo “Qual o rumo?” A foto sobreviveu, o negativo não. Essa fotografia ilustra a maneira de Erno trabalhar, “sempre na rua”. Olhar e, principalmente, enxergar a vida. Observar e clicar, já enquadrando no olhar a fotografia futura. Retratar a história que passa e fica registrada num instante. E buscar o inusitado, como o vira-lata vendo a exibição da Esquadrilha da Fumaça; um guarda-chuva ilhado numa enchente; o presidente-ditador olhando a nudez esculpida das irmãs; o protesto no trote; soldados cercando o Congresso no recesso; o menino aprisionado na janela; e o carinho entre menina e menino. Esse gosto talvez tenha surgindo na infância ao ver fotos em jornais e revista em Feliz, na serra gaúcha, onde nasceu em 22 de outubro de 1935.
Ainda menino mudou-se para a vizinha Caxias do Sul – arriscou uns chutes no Juventude. Trabalhou num laboratório fotográfico e adquiriu uma American Box, a primeira de suas câmeras. Como freelance em O Pioneiro, a prática o ensinou a fotografar e lhe deu dinheiro para instalar seu laboratório. Aos 17 anos transferiu-se para Porto Alegre, determinado a ser contratado por um grande jornal. Ouviu negativas e acabou em O Clarim, de Leonel Brizola, comandado por Carlos Contursi, que apostou no jovem aprendiz: “Pega a máquina e vamos fazer uns trabalhos.” Próximo destino: Rio de Janeiro.
Chegou no início dos anos de 1960. Fez fotos para Manchete, Diário da Noite, Jornal do Brasil, Associated Press, Grupo Abril até chegar ao Correio da Manhã logo depois do golpe militar de 1964, para criar e chefiar o Departamento Fotográfico a convite da herdeira do jornal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt. Ali, com sua equipe, “e a maior liberdade”, revolucionou o fotojornalismo, unindo na mesma imagem beleza e informação. E quando o matutino da Avenida Gomes Freire foi arrendado, em 1969, mudou-se com sua equipe para a Rua Irineu Marinho, endereço de O Globo, no qual ficou até 1986. Mas como freelancer Erno, que morreu em 2022, aos 86 anos, continuou pelas ruas a observar e a fotografar flagrantes de vida.
Bertholdo de Castro é jornalista.