Skip to content

Diário de uma tragédia

MAURO VENTURA

É com tristeza que o gaúcho Daniel Marenco resume o que tem visto em seu estado, após as enchentes que castigam a região:

– É assustador. É como se fossem as tragédias de Teresópolis, do Morro do Bumba, de Katmandu, de Alagoas, de Brumadinho, de Mariana, todas juntas e ampliadas.

Em sua comparação, Marenco cita as chuvas na região serrana do Rio, o deslizamento na favela em Niterói, o terremoto no Nepal e o rompimento da mina da Brasken em Maceió e das barragens em Minas. Fotógrafo desde 1999, ele tem experiência em cobrir desastres. Mas nada o preparou para o que está vendo agora. Não só por estar acontecendo em sua terra natal como também pela extensão e pela duração.

– A proximidade com a tragédia sempre afeta. Mas o que pegou mais é a dimensão da tragédia. E também o fato de parecer que ainda não alcançou seu pico máximo. Parece que o ciclo de amenizar, comum a outras tragédias, não chega nunca. A sensação é de ainda estarmos em uma curva crescente de desgraceira.

Ele detalha o horror que tem presenciado:

– Cidades inteiras destruídas. São Leopoldo e Canoas submersas. Sobrevoei Canoas, e não há lente grande angular para uma foto de dentro do helicóptero que mostre todo o aguaceiro. E acho que as cenas piores ainda estão por vir. Quem já cobriu tragédia entende esse meu medo. É quando a água baixa que o horror se revela. Imagino que ainda veremos muitas cenas desagradáveis.

Ele começou a fotografar dias após a tragédia. O primeiro movimento foi ajudar os parentes. Marenco mora no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, onde felizmente só tem experimentado reflexos da tragédia, como falta d’água, desabastecimento de produtos, oscilações de energia e internet. Sua mãe, que mora em São Leopoldo, por sorte estava no litoral, num aniversário. O maior drama familiar é seu tio, irmão de sua mãe e seu padrinho, também de São Leopoldo, que vive no bairro Rio dos Sinos. Inundou tudo, a ponto de nem dá para ver mais o telhado da casa. As filhas resolveram levá-lo de madrugada para o apartamento da irmã, que fica no Centro da cidade, na certeza de que ali ele estaria a salvo.

– Só que até no Centro a água subiu – espanta-se Marenco. – Não imaginávamos que mesmo lá tudo viraria rio.

O tio ficou ilhado, num prédio sem luz, sem gás e sem água, e só sai de vez em quando de barco.

– Mas estamos pressionando-o para que saia dali porque teve um novo alerta do prefeito avisando que a água em São Leopoldo vai subir mais. Ele não vai aguentar o frio porque só está com as roupas que eram minhas e que eu deixava no apartamento da minha mãe.

Não é a primeira vez que a família é afetada pela enchente, mas nada como agora.

– Há uma foto em que apareço, há 42 anos, com 2 anos e poucos meses, num barco durante uma enchente em São Leopoldo. Meus pais acompanhavam o nível do Rio dos Sinos e iam elevando as coisas dentro de casa com cavaletes e outros móveis. O trauma fica. Até hoje minha mãe morre de medo de água porque quando criança, em outra enchente, caiu de um barco. Um aguaceiro assim não leva só os bens materiais. O resultado do negacionismo climático somado a políticas antiambientais acaba também com as memórias afetivas das pessoas.

Após ter passado por veículos como Folha de S. Paulo, O Globo e Zero Hora, Marenco trabalha atualmente para o time do Internacional.

– Meu clube de paixão e de profissão também alagou. Muitos dos atletas começaram a ajudar com resgates e arrecadações de donativos.

Ele está assustado com o que tem visto e com o que pode vir pela frente.

– Agora mesmo, enquanto respondo a você, minha mãe mandou no grupo da família do WhatsApp um vídeo do prefeito de São Leopoldo avisando de um novo transbordamento do Rio dos Sinos, com chances de ter uma cheia ainda mais alta que essa última. As casas de bombas não deram conta e um dique de contenção se rompeu.

O fotojornalista, que mantém seu próprio site e tem uma página dedicada a seu trabalho no Testemunha Ocular, constata, desconsolado:

– A cada centímetro que mergulho na tragédia fica mais evidente que nada, nenhuma das quaisquer situações em que já estive como jornalista, chega perto do que estou vendo. A tragédia ainda não mudou seu ciclo, não está diminuindo. Está enorme e, infelizmente, com chances de ainda se tornar maior. Ver de perto, mesmo dias depois do início, está sendo muito difícil. E a sensação de impotência, tanto de ajudar como de conseguir dimensionar quão avassaladora ela é, não some. Não há mais estado emocional saudável. É um cenário assustador de um futuro que já não imagino qual será.

A enchente alagou boa parte de Porto Alegre, mas deixou de fora das águas o Monumento aos Açorianos, à esquerda, na praça. Foto de Daniel Marenco/UNHCR.
A maior enchente da história de Porto Alegre deixou a capital do Rio Grande do Sul sob as águas. Foto de Daniel Marenco.
Em muitos locais de Porto Alegre a única maneira de se locomover é de barco, mesmo que improvisado. Foto de Daniel Marenco.
As águas cobrem quase toda a mulher em alagamento no bairro Navegantes, na enchente em Porto Alegre. Foto de Daniel Marenco.
Os animais ficaram ilhados nos telhados das casas durante a maior enchente da história de Porto Alegre. Foto de Daniel Marenco.
O nível do Guaíba alcançou 5,35 metros, superando os 4,76 metros da enchente histórica de 1941. Foto de Daniel Marenco.
O fotógrafo Daniel Marenco sobrevoou de helicóptero a cidade de Canoas.
As águas avançaram sobre mais de 60% da cidade de Canoas. Foto de Daniel Marenco/UNHCR.
Voluntários de todo país participam dos resgates em Porto Alegre. Foto de Daniel Marenco/UNHCR.
A exaustão dos voluntários, que trabalham de forma incansável. Foto de Daniel Marenco.
O nível do Guaíba subiu e inundou Porto Alegre, forçando mais de 14 mil pessoas a irem para abrigos. Foto de Daniel Marenco.