Junho de 2013: de olho na rua
EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR
Há dez anos o Brasil vivia um dos meses mais turbulentos de sua história: junho de 2013. As chamadas Jornadas de junho tiveram início no dia 3, quando um grupo se manifestou na Estrada do M’Boi Mirim, na periferia de São Paulo, logo após o reajuste das tarifas do transporte público. Os protestos, estimulados pelas redes sociais, escalaram nos dias 6 e 7, quando houve casos de depredação em estações de metrô e prédio públicos de São Paulo, e confrontos no Rio. O passo seguinte veio no dia 11 de junho, quando cerca de 5 mil pessoas se reuniram na região central da capital paulista. Nesses atos, alguns manifestantes encapuzados, batizados depois de black blocs, aproveitavam o fim dos protestos para provocar cenas de vandalismo, como quebrar vidraças de bancos e concessionárias de veículos.
Até que veio o dia 13, considerado por especialistas o momento da virada. Cerca de 6.500 pessoas, segundo o Datafolha, manifestaram-se no centro da capital paulistana. Por trás do ato estava o Movimento Passe Livre (MPL). O protesto foi violentamente reprimido pela polícia, que usou balas de borracha, gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral. Houve reação. Alguns ativistas atiraram objetos e rojões, botaram fogo em lixo e picharam ônibus.
Foi uma noite de caos, que teve como saldo 232 presos e mais de cem feridos, entre eles jornalistas, pedestres e motoristas. Entre as vítimas, pelo menos 17 profissionais de imprensa, como o fotógrafo Sergio Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo por causa de uma bala de borracha.
Em vez de conter os protestos, a truculenta ação policial serviu de combustível para as manifestações, que se espalharam por várias partes do país, atraindo cada vez mais gente. No dia 17, já eram 65 mil pessoas nas ruas de São Paulo e cem mil no Rio.
E mudou também o foco da manifestação. Ao longo dos meses que se seguiram, os alvos se tornaram mais amplos, difusos e variados. “A pauta passou da oposição ao aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus à insatisfação generalizada com os gastos para a Copa do Mundo de 2014, as denúncias de corrupção na política e o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT)”, escreve a repórter Julia Braun, em matéria na BBC Brasil.
Na reportagem, o sociólogo Breno Bringel, da Uerj, diz que o 13 de junho em São Paulo foi um “dia chave” na história dos acontecimentos de 2013:
– Foi um ponto de inflexão, pois a partir da onda de indignação e solidariedade gerada pela repressão os protestos se difundiram para outras cidades com mais força e mais pessoas aderiram ao movimento, inclusive pessoas que não estavam acostumadas a sair às ruas.
Nos cartazes e palavras de ordem, manifestantes os mais diversos protestavam contra a corrupção, criticavam políticos, exigiam melhoria em serviços públicos de saúde e educação, pediam o fim da Polícia Militar, tratavam de temas como feminismo e direitos LGBTQIA+ e lutavam pelo arquivamento da PEC 37, a Proposta de Emenda à Constituição que tirava do Ministério Público a competência para investigação criminal, concentrando-a nas polícias – a PEC acabou arquivada, diante da pressão popular. E rejeitavam a realização da Copa das Confederações e da Copa do Mundo no Brasil. Os grandes eventos eram vistos como desperdício de dinheiro público e fonte de superfaturamento. Uma frase comum à época era “Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”.
Duas fotógrafas que têm páginas com seus trabalhos abrigadas no site Testemunha Ocular viveram de perto as manifestações de rua de 2013. Uma, Gabriela Biló, em São Paulo. A outra, Ana Carolina Fernandes, no Rio.
Biló, que estava no início de sua carreira, diz que o balanço pessoal das jornadas de 2013 foi “emocionante e assustador”.
– Junho de 2013 foi um desafio interpretativo. A gente sabia que era um momento efervescente, dava para sentir que estava sendo feita história, mas nada nos prepararia para as consequências que viriam – diz ela, citando a emergência da extrema-direita a partir de 2018.
Também era cansativo e perigoso:
– Era muito exaustivo, a gente caminhava demais, às vezes 10 quilômetros, com equipamento nas costas.
E era tenso porque por vezes a manifestação começava pacífica, mas depois desandava, seja pela repressão policial, seja pela interferência dos black blocs.
– Fui agredida algumas vezes com cassetete, e tive minha perna cortada por estilhaços de uma bomba de efeito moral – diz ela, que chegou a fazer Boletim de Ocorrência contra a PM após um dia em que apanhou junto com outros jornalistas. Eles estavam fotografando um menino que estava sendo enforcado por policiais, que não gostaram de ser focalizados.
Trabalhar no front de fato traz muitos riscos, ainda mais no caso de Ana Carolina, que sempre gostou de estar bem próxima dos acontecimentos – “no olho do furacão”, como diz. Nessa época, ela percebeu uma lacuna na cobertura dos protestos feita pelas grandes TVs e pelos jornais, que não cobriam tão de perto ou não tinham espaço para exibir toda a produção feita por seus fotógrafos. Ana Carolina, que na ocasião já era uma fotógrafa consagrada, passou a usar o Facebook para postar na mesma noite as fotos das manifestações. Foi um sucesso. Que rendeu elogios, mas com um custo pessoal.
– Por diversas vezes policiais me empurraram, me jogaram no chão, me bateram com cassetete, usaram spray de pimenta. Por duas vezes, puxaram o elástico da máscara que eu usava e jogaram gás dentro. E cheguei a levar um tiro de bala de borracha na perna.
Biló, que cobriu praticamente todas as manifestações do período – “acompanhei uns 95% delas”, calcula -, percebeu claramente a mudança no tipo de reivindicações:
– No dia 17 de junho, ficou muito claro para mim que teve uma troca de narrativa, porque a gente viu as cores das bandeiras mudando. Até então, a gente via muita bandeira vermelha, preta e antifascista. De repente, começaram a aparecer as bandeiras do Brasil e o slogan “não é por 20 centavos”, enquanto o MPL sempre deixava claro que a pauta deles era o aumento das tarifas. Então nesse momento era muito óbvio que houve um sequestro da narrativa, com o surgimento de cartazes pedindo, por exemplo, intervenção militar.
Ela cita outro ponto que ajudou a perceber que algo havia se alterado.
– A própria interferência da polícia foi mudando de tom. Quando se pedia tarifa zero, a polícia era muito mais violenta. Já quando começou a apropriação da pauta pela direita, a polícia estava junto dos manifestantes. Para quem estava na rua dava para sentir um vácuo de poder que seria preenchido com quem fosse mais rápido. No caso, a extrema-direita. Foi interessante acompanhar do ponto de vista antropológico, de ver como a própria polícia estava estudando aquele fenômeno sem precedentes.
Ana Carolina Fernandes também acompanhou in loco essa mudança dos temas, com o foco voltando-se mais para o combate à corrupção, tendo como alvo os políticos de modo geral e, de maneira particular, o então governador Sérgio Cabral. Ela não pôde participar das duas primeiras manifestações no Rio, no Centro, em junho. A primeira porque estava cobrindo a Copa das Confederações para a agência Reuters. E, a segunda, porque coincidia com a inauguração de sua exposição “Mem de Sá, 100”, sobre as travestis da Lapa.
À época, ela havia abandonado o jornalismo diário para se concentrar num trabalho mais autoral. Mas fazia frilas para a Folha de S.Paulo, para agências de notícias e para revistas. O primeiro protesto que cobriu foi em 4 de julho, no Leblon, que começou em frente à casa de Cabral. Como não estava ligada a nenhum veículo, ela resolveu fazer um trabalho mais livre, menos factual. Foi aí que registrou, por exemplo, o salto 14 da major Fabiana Silva de Souza junto aos coturnos de seus subordinados. Mas a violência se intensificou a partir das 22h. Quando a confusão estourou, o lado poético dividiu espaço com imagens dramáticas de corre-corre, enfrentamento, bombas de gás lacrimogêneo, tiros de balas de borracha e pedras portuguesas arremessadas em plena Avenida Delfim Moreira, na Praia do Leblon.
– Eu tinha ido com o carro da minha mãe, sem máscara, sem capacete, sem nada. Até brinquei depois com um amigo fotógrafo, o único que tinha ficado comigo ali: “Caramba, eu saí do fotojornalismo, mas o fotojornalismo não sai de mim.”
Chegou em casa quase 23h e telefonou para o então chefe de fotografia da Reuters na América Latina, Sérgio Moraes. O site da agência publicou todas as fotos feitas por ela naquela noite.
Mais tarde, nos anos seguintes, os protestos tomam outro rumo e forma, quando as ruas passam a ser ocupadas por um público mais velho e de maior poder aquisitivo. A pauta passou a ser o impeachment de Dilma. Mas não é possível afirmar, explicou Bringel à BBC, que os protestos de 2013 foram os grandes responsáveis pela criação do bolsonarismo. Embora “os legados” de junho de 2013 tenham sido apropriados pela direita, muitos outros fatores contribuíram para isso, diz o professor.
O jornalista, fotógrafo e cineasta João Wainer acompanhou de perto esse momento histórico. Na época, ele coordenava a TV Folha, departamento de vídeo do jornal Folha de S.Paulo, e acabou transformando o material no documentário “Junho, o mês que abalou o Brasil”, exibido nos cinemas em 2014. Wainer viu quando a luta pela gratuidade do transporte público foi ofuscada por um genérico “contra tudo o que está aí”.
“Havia uma insatisfação latente e quase imperceptível na sociedade, que entrou em erupção, provocando uma fissura que foi se abrindo nos anos seguintes e formando placas tectônicas gigantescas que se afastaram umas das outras até formar o abismo que vimos na eleição de 2018”, escreve ele no livro “A verdade vos libertará”, de Gabriela Biló.
Ana Carolina também se deu conta de que estava vivendo uma experiência única. Apesar dos riscos, ela tinha uma vontade “indescritível” de estar “documentando a história”.
– Foi um aprendizado incrível ter participado de um momento sem precedentes na história mais recente do país. Um aprendizado pessoal, emocional, profissional.
Em termos políticos e de cidadania, ela compara essa passagem a outro momento da cena brasileira:
– Guardadas as devidas proporções de época, situação e contexto, aquelas manifestações, especialmente no começo, me remeteram às Diretas Já.
Em 1984, Ana Carolina tinha 21 anos, era estagiária do jornal O Globo, mas sabia que vivenciava um momento marcante – para ela, para o Brasil e para o mundo, que “molda a sociedade”.
As fotos de 2013 viraram em 2015 uma exposição organizada por Milton Guran e intitulada “Ana Carolina Fernandes repórter”, no Centro Cultural Correios, no Rio, com mais de 70 imagens, entre elas 38 das manifestações. Uma dessas fotos também ilustrou em 2014 a capa da revista Le Temps Modernes, que foi criada por Sartre e Simone de Beauvoir. Intitulada “Brasil 2013-2014 – O ano que nunca acaba”, a reportagem traz um dossiê com análises acadêmicas sobre os acontecimentos de 2013 no Brasil.
– Sempre que cobria manifestações, como naquela época, eu tentava procurar imagens que transmitissem o espírito e a energia das ruas. Claro que me sentia ameaçada muitas vezes, pela polícia e por manifestantes mais exaltados, mas estava emocionada de estar ali, tendo o cuidado de contar aquela história com muita verdade e honestidade.