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Imagem real e Inteligência Artificial

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR

Mês passado o alemão Boris Eldagsen venceu o prêmio principal da categoria criativa do prestigioso Sony Award Photography com a imagem “Pseudomnesia: The electrian” (“Pseudomnésia: O eletricista”, em tradução livre). Até aí, nada demais, já que ele tem uma carreira bem-sucedida que já dura 20 anos. O susto maior veio depois, quando o autor da foto em preto e branco, que mostra uma mulher mais velha abraçando outra mais nova, recusou o prêmio. Em sua justificativa, ele revelou que seu trabalho foi feito com uma ferramenta de Inteligência Artificial (IA) e não com uma câmera. “Imagens feita com IA e fotografia não devem competir entre si em um prêmio como este. São entidades diferentes. IA não é fotografia. Portanto, não aceitarei o prêmio”, disse Boris.

A polêmica levantou um intenso debate sobre os riscos da IA na fotografia e, em especial, no fotojornalismo. Na segunda reportagem que marca o primeiro aniversário do site Testemunha Ocular, ouvimos especialistas e fotógrafos para falar sobre os desafios trazidos pela nova tecnologia. Todos concordam que a Inteligência Artificial veio para ficar, mas alertam que é preciso deixar claro para o espectador quando a foto foi feita por uma ferramenta de IA ou pelos métodos tradicionais. Uma recomendação que eles fazem é que, em meio à pressa com que as imagens circulam no mundo hoje, os profissionais ponham o pé no freio.

– Nesse momento, é necessário que a gente tenha mais parcimônia, mais lentidão antes de passar para frente uma imagem – diz Daigo Oliva, editor de Mundo da Folha de S.Paulo. – Os profissionais de jornalismo têm que ter o dobro de cuidado na checagem de seus registros antes da publicação. É preciso ter uma forma de monitoramento, de rastreio, para saber se as imagens foram geradas a partir da tecnologia de um computador e não de um dispositivo fotográfico.

Ele lembra que quando a foto digital se popularizou de forma maciça algo parecido aconteceu.

– Naquele momento, o mais importante era reforçar os pilares da checagem jornalística para você ter a certeza de que aquelas imagens eram de fato registros verídicos. A gente sempre teve essa preocupação com a checagem de imagens que são produzidas digitalmente, mas hoje, como a facilidade para produzir imagens falsas é maior, temos que redobrar esse tipo de atenção.

Em entrevistas que concedeu após a polêmica, Boris Eldagsen fez uma observação que vai na mesma linha de Daigo, ao se referir a uma imagem do papa vestindo uma jaqueta branca inspirada em Balenciaga, que viralizou semanas atrás e foi produzida com IA por Pablo Xavier, um trabalhador da construção civil americano de 31 anos que disse ter querido apenas fazer uma “arte engraçada”:

– A imprensa precisa criar um sistema para deixar claro o que é autêntico, manipulado ou gerado – diz ele, citando uma possibilidade que já foi levantada, de rotular as fotos com A, quando forem autênticas, com M, no caso de terem sido manipuladas, e com G, quando tiverem sido geradas por IA. – Essa foto papa deveria sempre ter sido apontada (como tendo sido criada por IA). Se você não fizer isso, a democracia será manipulada e mal informada por qualquer um que saiba escrever cinco palavras.

Mas ele alerta que essa é uma tarefa grandiosa e custosa demais para ficar nas mãos somente da mídia:

– Não podemos deixar a imprensa trabalhar sozinha. É muito importante para uma sociedade democrática (ser capaz de distinguir fotos reais de falsas). Então temos que pensar na estrutura para cofinanciar isso (a verificação de fatos). Mas como podemos cofinanciar e ainda manter a liberdade de imprensa? Isso é algo que precisamos pensar. A tecnologia me entusiasma como artista, mas também me preocupa como cidadão.

Michele Pucarelli, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), também afirma que é preciso deixar as coisas claras para o leitor. Ele lembra o caso de uma imagem recente feita pela fotógrafa Gabriela Biló para a Folha de S.Paulo, que mostra o presidente Lula sorrindo e ajeitando a gravata por trás de um vidro estilhaçado, como se tivesse sido atingido por um tiro. Houve foi uma sobreposição de imagens, ou seja, a combinação de duas fotos – a do vidro do Palácio do Planalto vandalizado pelos atos golpistas do dia 8 de janeiro e a do presidente, que estava no andar de baixo – para criar uma terceira.

Na legenda do jornal, estava escrito: “foto feita com múltipla exposição mostra Lula ajeitando gravata e vidro avariado em ataque”. A questão é que para o leitor comum essa informação não é esclarecedora. Para Michele, era preciso explicitar melhor a técnica por trás do resultado. A partir desse caso, o jornal percebeu que de fato é necessário detalhar de forma mais clara quando a foto resulta da combinação de duas ou mais imagens. O aviso, diz Michele, vai ser cada vez mais necessário, ainda mais com a popularização da Inteligência Artificial:

– A IA vai dominar a imagem e vai exigir um posicionamento claro dos órgãos de comunicação. Se é uma imagem com alterações, isso deve vir logo na legenda.

De toda forma, Michele observa que nunca viu tanto debate em torno do fotojornalismo quanto o que o trabalho feito por Biló provocou.

– Só por isso essa imagem já tinha que ser valorizada.

A portuguesa Ângela Ferreira, artista e curadora portuguesa na área da Fotografia e Cultura Visual Contemporânea, levanta outro ponto importante. Segundo ela, é preciso investir na educação e no letramento visual.

– Precisamos aprender a decodificar imagens, interpretar os nossos gestos de comunicar por meio de imagens, cultivar o senso crítico e incentivar a análise reflexiva e a busca pela diversidade de fontes e perspectivas – diz ela, que vive entre Portugal e Brasil, trabalhando na transversalidade das narrativas, traduzidas em fotolivros.

Não é tarefa fácil, como o caso de Boris revelou. Ao fazer sua experiência, ele queria testar se uma competição aceitaria imagens geradas por IA. Inscreveu-se em três prêmios diferentes, e a imagem foi sempre finalista. Ou seja, os próprios jurados, que são fotógrafos experientes e especialistas em arte, não perceberam que não se tratava de uma fotografia convencional, o que o impressionou. De acordo com ele, seria possível perceber a diferença apenas olhando para a imagem.

– Há uma diferença na cor que vem de fora. No lado esquerdo é muito amarelado e, no lado direito, muda para preto e branco – diz ele, apontando que, além do mais, os dedos e parte do braço direito poderiam sinalizar que era IA. – Se você trabalha com isso no dia a dia, como eu, dá para perceber.

Boris prefere chamar seu trabalho – e toda imagem produzida por IA – de “promptography”, termo cunhado pelo fotógrafo peruano Christian Vinces. Vem do verbo “to prompt”: incitar, incentivar, estimular.

– O termo “promptography” poderia ser traduzido por estimulografia, incentivografia ou incitografia, abarcando toda produção imagética por algoritmo derivada de sistemas de aprendizado por máquina operando a partir de vastos bancos de imagens digitais que reúnem amplo legado histórico referente à produção e representação visual gerada por artistas e autores, identificados ou não, de várias épocas, trabalhando em diferentes meios, como pintura, desenho e fotografia – diz Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles.

Outros exemplos de como é fácil criar imagens falsas usando o gerador de IA Midjourney foram as várias cenas de Donald Trump sendo preso, que viralizaram nas redes sociais. Mais realista é o trabalho da italiana Barbara Zanon. Em menos de duas horas, ela fabricou uma série de imagens realistas da Guerra da Ucrânia, sem sair de sua casa, em Veneza, usando apenas a tecnologia e a imaginação. Uma das fotos mostra uma senhora com um vestido branco e uma flor na lapela, em meio a um cenário de destruição. Em seu Instagram (@italyweddingphotos), a fotógrafa de casamentos e fotojornalista alertou:

– Seremos inundados com imagens indistinguíveis de qualquer fotografia real. Os jornais vão usar algumas delas, às vezes conscientemente, às vezes sem saber. As redes sociais serão inundadas com notícias falsas comprovadas por imagens. Eles vão tirar fotos de crimes nunca cometidos, de gestos nunca feitos. E como todos nós carecemos da cultura fotográfica, distinguir o real do irreal será difícil, senão impossível. O mundo das imagens vai evoluir, com legislação ainda a ser definida e que chegará atrasada em relação à tecnologia. E, enquanto isso, você não será capaz de dizer se está assistindo a fotos de um filme ou de um noticiário. E você se sentirá cada vez mais distante dos acontecimentos e das pessoas, pensando que tudo é, no fundo, ficção. Que tudo está longe de você. E isso se realmente existe, quem sabe.

O fotojornalista Victor Moryama, que tem uma página dedicada a seu trabalho no site Testemunha Ocular, também se mostra preocupado. Ele inclui a IA dentro de uma questão maior:

– O meu medo é que a Inteligência Artificial tenha tanta influência nas nossas vidas que a sociedade perca o parâmetro do que é verídico. Eu me preocupo com essa guerra de fake news que a gente está vivendo, e o quanto as novas gerações não vão se importar mais com a verdade dos fatos. Porque o público talvez não esteja nem mais aí se a foto foi feita pelo celular ou se é uma superfoto. Talvez estejam se contentando em não ter um serviço fotográfico de primeira. As pessoas estão perdendo um pouco a capacidade de ler uma fotografia, de se importar com uma fotografia bem resolvida, que traduz bastante vários aspectos da situação.

Outro ponto levantado pelos especialistas é que a manipulação das imagens não surgiu agora, com a IA. Ela intensifica o que já vem de longa data.

– A construção artificial da imagem está na história da própria fotografia – diz Michele.

Um caso clássico é o da foto de um casal se beijando em Paris, captada pelo fotógrafo francês Robert Doisneau e publicada em 1950 na revista Life ilustrando um artigo sobre o amor em Paris. Ele chamou dois jovens atores, deixou-os na rua e os acompanhou de perto. E registrou o beijo. Michele cita ainda uma imagem emblemática da Segunda Guerra que gerou dúvidas: a dos soldados americanos içando a bandeira em Iwo Jima, no Japão, tirada por Joe Rosenthal em 23 de fevereiro de 1945 e vencedora do prêmio Pulitzer. Quando os militares chegaram pela primeira vez ao topo do monte, não havia nenhum fotógrafo presente. Rosenthal só pôde captar a cena quando uma segunda bandeira, maior, foi içada.

Michele pondera ainda que o fotojornalismo não se resume a hard news, aquelas notícias mais quentes, típicas do noticiário de Política, Economia e Cidades.

– Boa parte do fotojornalismo hoje é na área de cultura, que já vem num processo antigo de diálogo e misturas com linguagem publicitária e cinematográfica.

Ele observa que é cedo para fazer previsões:

– A gente não sabe para onde vai caminhar a IA. É preciso dar tempo ao tempo. Nem bajular, nem sair queimando a IA. Ela pode vir a ser uma aliada em determinados contextos, que talvez a gente não saiba quais são agora. Eliminarmos a possibilidade de eticamente usar essa tecnologia para dar informação é precipitado. E se for uma situação em que é impossível chegar lá, como um campo de batalha?

Além disso, ele lembra que os códigos mais puristas sofrem alterações no decurso da história, como aconteceu no uso dos equipamentos à longa distância em pistas de corrida ou atrás da rede do gol, e ainda com a transformação no uso dos celulares como equipamentos de apoio. 

Gabriela Biló lembra que a resistência à IA já teve similares no passado:

– Sou sempre a favor do avanço da tecnologia. Toda vez que há um avanço a gente tem resistência: “Ai, meu Deus, o que vamos fazer, é o fim do fotojornalismo.” Penso o contrário. A gente tem que aprender a dominar essas ferramentas. É todo um novo mundo que acabamos de descobrir e que precisa ser explorado. Foi a mesma coisa com a fotografia colorida, com fotografia digital, com o celular. O fotojornalismo continua tendo espaço para quem quer fazer. Não vejo o fotojornalismo ameaçado pela IA, ao contrário. A Inteligência Artificial está aí para ajudar. Acho que é uma ferramenta que ainda vai se revelar. Mas, para mim, ela não é a inimiga e sim uma aliada, a gente só precisa aprender a dominar essa ferramenta.

Biló tem procurado entender como a IA pode ajudar. Ela tem feito experiências com Inteligência Artificial para a exposição que vai inaugurar em setembro no Museu de Arte de Brasília (MAB), mas não sabe ainda se vai aproveitar os estudos na mostra.

Michele pensa parecido:

– Ao longo da história, toda nova imagem técnica sofreu um processo de rejeição. Aconteceu com a fotografia, o cinema, a TV, o vídeo, a imagem digital. E acontece com a IA. Não adianta. A história mostra que a nova imagem acaba predominando. As transformações tecnológicas sempre antecipam as transformações culturais, e você precisa desse casamento entre mudança técnica e mudança cultural para gerar uma mudança comportamental. 

Ele se mostra otimista sobre a profissão do fotojornalista:

– A IA vai transformar profundamente o modo como a gente se comunica, produz e aprende. Mas, pelo menos nessas primeiras gerações, ela não vai ter o elemento da criatividade, a capacidade de tomar decisões no calor do momento, que é uma capacidade humana.

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